Parece irreal, mas foi apenas há 13 anos que a atriz Glória Pires venceu o primeiro prêmio numa competição em festival de cinema, justo em Brasília, com o filme É proibido fumar. "Estou aberta à carreira no cinema", disse, à época, a intérprete de Baby, uma fumante compulsiva. Estranho que o prêmio tenha vindo anos depois de muita dedicação à sétima arte, com resultados potentes como O quatrilho, indicado ao Oscar em 1996; e Memórias do cárcere (1985), que, sob direção de Nelson Pereira dos Santos, lhe rendeu o papel de Heloísa, a esposa de Graciliano Ramos. Desde a última quinta, Glória Pires, aos 58 anos, é o principal chamariz de A suspeita, no qual desfila o talento, na pele da atordoada Lúcia, uma policial confusa pela crescente ação do Alzheimer no seu dia a dia.
Lúcia rendeu novo prêmio para Glória, dada como a melhor atriz, no último Festival de Gramado, justo pelo filme que lhe trouxe o recente desafio de investir na carreira de produtora. Ainda com mistério, a atriz já sinalizou a vontade de estrear na direção do primeiro longa, sob o estímulo de Pedro Peregrino (diretor dela em A suspeita e ainda, na televisiva Éramos seis).
No mais recente filme, uma brecha importante povoa a fala de um dos personagens, a postos para lembrar que "sem memória, não existe país". A suspeita, pelo tratamento delicado ao Alzheimer, mostra a protagonista esquecendo coisas no fogão e tendo dificuldades em assimilar pistas no quebra-cabeças da profissão, que avança em temas como queima de arquivos. Curiosamente, num momento de violência candente e que coloca o Brasil sob os holofotes negativos da mídia, é a estrela do blockbuster Se eu fosse você que, indiretamente, confirma retrocessos do país: há 40 anos, na estreia em cinema, com Índia, a filha do sol, a atriz carioca já desbarava uma trama de fundo ecológico que alinhava garimpo e violência.
Qual a tua contribuição na cinematografia brasileira? Como vê a ação da arte na pandemia? O setor cultural está fragilizado?
Difícil responder à esta pergunta da contribuição: só o futuro dirá. Quanto à cultura, vejo o setor fragilizado, por um lado, mas, sempre, resistindo. Resistência está no cerne da própria atividade. Todos precisamos nos ver e nos reconhecer, ouvir nosso idioma e transmitir nossa história.
Ao assumir um personagem como a Lúcia, que, indiretamente, traz mensagens de etarismo e de aposentadoria, como percebe teu comprometimento social?
Amo as personagens que trazem suas fragilidades. Acredito que a função social das manifestações artísticas é dialogar com as questões da vida quotidiana, apontando portas, janelas ou caminhos. A arte não só é feita para ser apreciada mas, principalmente, questionar nossa forma de viver e ver o mundo.
Você criou e administra um método de interpretação pessoal?
Sou autodidata, não tenho uma formação acadêmica, mas posso dizer que me considero uma atriz stanislavskiana, desde que ganhei de meus pais o livro A preparação do ator, que me acompanha até hoje e ao qual sempre retorno. Sou atraída pelas personagens que, dentro de sua fragilidade humana, superam suas limitações, por algo maior — as chamadas heroínas. Nise da Silveira, de Nise — O coração da loucura; Dona Lindú, de Lula, o filho do Brasil; Lota de Macedo Soares (Flores raras) e Lúcia, do filme atual. Também me atraem projetos onde possa explorar novos possibilidades ou e gêneros.
Como será viver uma agitada vovó ninja, no próximo filme? Que cuidados reserva para trazer entretenimento junto a crianças?
Estou animada. O filme fala sobre algo que todos experimentamos na pandemia: o exercício da convivência, seus momentos difíceis e suas delícias, com humor e reflexões comuns a todas as idades!
A Lúcia tem questões quanto ao futuro... Como você lida com o próprio envelhecimento?
Lido bem com o envelhecimento. Vivo o presente, em direção ao futuro e envelhecer está nesse escopo. Me cuido direitinho e todos os meus esforços são no sentido de conquistar e manter uma boa saúde, com alimentação orgânica, atividade física e repouso equivalente. Meu pai (o ator Antônio Carlos) era praticante de yoga e me habituei a vê-lo acordar às 5h para praticar.
Como percebe a criação no cinema nacional? Você nota ter alargado horizontes da produção? Como avalia a presença da família Barreto na popularização do audiovisual?
Cada vez há mais interesse na diversidade, não só sobre o tema do projeto em si, mas também dentro da equipe e elenco, o que é excelente tanto para os profissionais quanto para o público. A família Barreto (Luiz Carlos, Lucy, Fábio e Bruno) é uma referência para o nosso cinema, inclusive um símbolo de resistência. Além da amizade entre nossas famílias, fizemos trabalhos importantes, que me deram muita alegria. Tenho um carinho especial por cada um deles e muita gratidão.
Vê com que naturalidade o advento do streaming e as mudanças de eixos nas relações de trabalho ocasionadas?
Os streamings querem produzir novelas, mas as séries tem seu lugar garantido. A tevê sempre namorou a estética do cinema. As novas tecnologias estão tornando isso mais viável, com as telinhas cada vez maiores.
Você é espectadora voraz de novelas? E quem são os grandes ícones da interpretação capazes de te arrebatarem?
Nunca fui noveleira, mas algumas me pegaram. Vou citar as quais não participei: Cordel encantado, Os ossos do barão e O Bem Amado. Minhas referências são: Sonia Braga, Yara Amaral e Ary Fontoura.
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