Diversidade

Obras apostam em personagens que lutam pela defesa da própria sexualidade

O Correio conversou com atores e autores de peças, filmes e séries que retratam a busca pelo respeito à diversidade sexual

Ricardo Daehn
postado em 09/06/2022 06:00 / atualizado em 09/06/2022 11:17
 (crédito: Fotos: Divolgação; Les Films du Losange/Divulgação; Léo Aversa e VALERY HACHE; California Filmes/Divulgação; Grafo Audiovisual/Divulgação e Paris Filme/Divulgação)
(crédito: Fotos: Divolgação; Les Films du Losange/Divulgação; Léo Aversa e VALERY HACHE; California Filmes/Divulgação; Grafo Audiovisual/Divulgação e Paris Filme/Divulgação)

Uma invasiva overdose de opiniões sobre a sexualidade de terceiros é introjetada no desenvolvimento do longa-metragem Má sorte no sexo ou pornô acidental, que venceu o Urso de Ouro no Festival de Berlim de 2021, e atualmente é exibido em Brasília. O filme lança mão de cenas de sexo explícito, num tratamento de choque, para aproximar os espectadores do tema que coloca em xeque as práticas sexuais de Emi (Katia Pascariu). Ela empreende uma via-crúcis para se libertar do julgamento, num tribunal comunitário que decide se pode seguir na carreira de professora dos jovens alunos de escola romena.

A suposta mácula na reputação da escola vem balizada por machismo, ironia e pela exposição da exploração midiática da nudez feminina, além de reflexões sobre pandemia e ainda por execração pública, elemento potente no filme de Radu Jude.

Todo o conservadorismo que pontua parte da obra de Jude se dispersa, quando contraposto a obras arejadas como a peça O prazer é nosso, recém-apresentada em Brasília. A defesa de uma perspectiva de liberdade sexual reflete um sentimento legal, livre e leve.

"É como a gente deve lidar com nossa vida sexual. Deveria ser assim: tivemos o advento da culpa e do pecado que complicaram muito a vida sexual, especialmente das mulheres", destaca a atriz Juliana Martins, idealizadora da montagem, que completa: "O nosso corpo pode ser uma festa sem culpa. Cada pessoa tem o seu querer".

Ela percebe que, progressivamente, as mulheres estão ficando donas de seus desejos e da execução deles. "Tudo começou numa bolha e está expandindo. Quanto mais falar, mais vão ouvir e mais vão pensar", defende Juliana. A primeira onda de feminismo é vista, por ela, como insuficiente. "Ainda não temos uma sociedade igualitária; temos uma sociedade patriarcal", demarca.

Outra atriz que celebra mudanças é a jovem trans Mya Bollaers, em primeiro plano na produção Lola e o mar (atração vista no streaming, na plataforma Filmicca). Em entrevista ao Correio, ela destaca o momento-chave da livre expressão da sexualidade de Lola: "Gosto muito da cena em que ela dança com as prostitutas porque é um momento em que quase esquecemos o patriarcado".

A expectativa da atriz em torno do público é alta — "espero bondade e tolerância". Quanto ao acolhimento da condição trans, Mya confessa que não se percebe altamente respaldada. "Infelizmente acredito que não há país que tenha a mente aberta o suficiente para se ter uma existência 100% segura", avalia.

Enfatizar a dose de luz na dura trajetória de um personagem como Lola norteou o diretor Laurent Micheli, indicado ao prêmio César junto com nomes "inspiradores" como Quentin Tarantino, Pedro Almodóvar e Bong Joon Ho.

"Coloquei Lola num ambiente colorido, pop, em movimento, como uma forma de criar contrastes. A assertividade da personagem é algo para se comemorar, precisava mostrar que ela não tem medo de confrontar o pai (papel de Benoît Magimel), mesmo que isso crie momentos muito violentos", comenta Laurent. Realizador belga tem noções claras sobre o panorama reservado aos espectadores do Brasil.

"Para mim, a comunidade LGBTQIA+ brasileira parece extremamente forte e cheia de riqueza, pois muitas vezes em países politicamente complicados, a contracultura é muito singular. Devo dizer que admiro muito o povo de vocês e sua resistência a um sistema político opressor que regularmente me assusta fortemente", salienta.

Muito aperto

A repressão da sexualidade se prova esmagadora em outra obra de cinema: o longa-metragem Great freedom que, depois da vitória no Festival de Cannes (na seção Um Certo Olhar), estreou na plataforma Mubi, projetando os desgastes emocionais e físicos com a existência do Parágrafo 175, desde o século 19 implantado para frear a "indecência antinatural", como era vista a homossexualidade.

"Percebi que cresci numa época em que o preconceito existia; cresci em meio à experiências homofóbicas", conta Franz Rogowski (leia entrevista), o ator central da fita que afirma o laço entre dois presidiários, num enredo assemelhado ao de O beijo da mulher aranha (1986). O chamado "parágrafo gay", retirado do código penal alemão apenas em 1994, perseguiu e condenou 140 mil homens, propagando a ideia de uma natureza sexual oposta "à geral e ordinária".

Em Águas selvagens, filme de coprodução brasileira exibida nos cinemas, pesa a denúncia de exploração sexual feminina e da reprodução, na sociedade, da imagem da mulher como objeto. "Isso acontece, infelizmente, e para nosso terror. Interpretar uma mulher que sofre violência, um abuso é dar voz a ela. O cinema cumpre esta função. Falo em nome das mulheres que passam por isso. No filme, que é cuidadoso, se apresenta a situação terrível e violenta da fragilidade de uma mulher: ela tem que se prostituir, e isso é 'tão' comum", destaca a atriz Leona Cavali.

Duas perguntas //Franz Rogowski, ator

Conhecido pelo trabalho com papas como Michael Haneke, Terrence Malick e Christian Petzold, o ator alemão Franz Rogowski adora valorizar a "resistência da cinefilia", em tempos da pandemia. Foi pelo streaming que Great freedom chegou ao mercado nacional (via Mubi). Dirigido por Sebastian Meise, o longa, todo centrado na trajetória de homens oprimidos, por causa dos desejos, exigiu muito do gestual do ator, dançarino e coreógrafo Franz Rogowski. Consciente, ele arrisca transmitir a visão do Brasil atual.

"Sei que o governo atual de vocês não tem sido inclusivo, e que não tem estimulado a expressão de subculturas e de minorias. Isso inclui todas as cores que uma nação cria. E creio que devamos superar estas adversidades para podermos ser humanos e aprender uns com os outros", avalia.

Você tinha noção do quão nefasto foi o chamado Parágrafo 175?

Fiquei muito surpreso por não ter ciência do conteúdo da legislação daquela época. A composição do personagem me fez perceber que cresci sob a vigência de experiências homofóbicas. Tive meus ensinamentos. Aprendi lições do que seriam roupas femininas, cores e tipos de brincos relacionados às mulheres. Jeitos errados de caminhar, de expressar emoções. Aprendi minha lição de que seria melhor ser heterossexual.

Cresci numa realidade muito segura, em termos de condições financeiras familiares e ainda em boas condições de estudo. Havia, ainda assim, a lógica de que sexo e identidade eram construídos em condições rígidas e limitadas ajustados ao período, na Alemanha em que cresci. Entendi que o que experimentei, de certo modo, foi violento e, em certa medida, um tipo de lavagem cerebral. Eu mesmo percebia aquela realidade como alheia aos meus entendimentos. Aquilo não se alinhavam à nossa democrática Alemanha. Foi libertário e educativo ter essa noção.

Que retorno dá representar o amor homossexual? Há limite para a sua exposição?

Como intérprete de cinema, represento as perdas do amor, e, como pessoa, me vejo envolvido no dia a dia na busca incessante por amor. É bom trazer para filmes os componentes da vida. Muito progresso foi feito, no terreno do amor entre iguais. Mas é fundamental relembrar que, num passado não tão distante, as coisas foram muito diferentes. Esse passado se propaga na nossa memória coletiva. Era a realidade dos meus pais, que cresceram num meio homofóbico, e isso está enraizado nas ideias deles.

É preciso trazer isso à tona e promover mudanças. Nas minhas regras atuais, como ator, não exponho os genitais para ninguém que não seja da minha família e para amigos íntimos. Isso é algo privado, e mantenho nesta instância. Há porém filmes que ganham com cenas de nudez. Há diretores que querem ser cool e realistas puxando tudo para extremos. Porém eu não quero instrumentalizar meu pênis para servir a estes propósitos extremos.

Letras multicores

Numa das iniciativa de visibilidade para questões ligadas à diversidade na literatura, a Editora Planeta, no mês do orgulho LGBTQIA+, disponibiliza livros dos autores Brontez Purnell e de Camila Sosa Villada. O parque das irmãs magníficas chega, de graça, em audiolivro (via Spotify), narrado por uma mulher trans: Valéria Barcelos.

Descrito como espécie de crônica com teor de manifesto político, o livro da argentina Villada revela descobertas e repressão, em casa, por familiares de uma personagem que se fixa na observação de travestis do Parque Sarmiento (em Córdoba). Lançado por uma editora do circuito underground de São Francisco, o livro Johnny, você me amaria se o meu fosse maior?, assinado pelo norte-americano Brontez Purnell, traz a corrente de lutas, numa cidade conservadora, enfrentada por um dançarino negro que vive os desafios de ser um cidadão soropositivo.

 

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  • Franz Rogowski, ator
    Franz Rogowski, ator Foto: VALERY HACHE
  • A peça O prazer é todo nosso foi idealizada por Juliana Martins
    A peça O prazer é todo nosso foi idealizada por Juliana Martins Foto: Léo Aversa
  • O longa belga Lola e o mar mostra uma jovem que luta pelo reconhecimento de ser trans
    O longa belga Lola e o mar mostra uma jovem que luta pelo reconhecimento de ser trans Foto: Les Films du Losange/Divulgação
  • Capa do livro Johnny, você me amaria se o meu fosse maior?
    Capa do livro Johnny, você me amaria se o meu fosse maior? Foto: Editora Planeta/Divulgação

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 (crédito:  California Filmes/Divulgacao)
crédito: California Filmes/Divulgacao

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