Você deveria ter visto Amaro Freitas tocando piano, até as 3 horas da madrugada desta segunda-feira (6/6), no encerramento do Festival Mova, em Brasília. A escassa, mas qualificada audiência testemunhou uma apresentação arrebatadora, conduzida com graça e força por um bruxo africano aos teclados. Duas moças ébrias e apaixonadas gritavam extasiadas em frente ao palco. O músico chegou a fitá-las por um instante, em uma das manifestações mais ruidosas, mas não perdeu o foco e permaneceu absorto, proporcionando um transe catártico às quase 100 pessoas que esqueceram o frio e abandonaram as primeiras obrigações de um início de semana para serem abençoadas por um som mágico — transcendental.
"Esse cara não é deste mundo. Deve ser um extraterrestre. Que show lindo! Genial", disse uma outra moça — distinta e elegante —, na primeira fila, usando o celular para um breve registro daquele momento surreal. A descrição seria perfeita, não fosse por um ligeiro equívoco. Amaro Freitas é filho da Terra, eclodiu das profundezas de uma natureza bravia e selvagem, como um pantera negra, tornou-se espécie rara em um mundo que enaltece os supérfluos saqueadores de caixas municipais, mas segue corajoso desbravando regiões ainda intocadas da música, arquitetando com absoluta contemporaneidade os alicerces de ritmos e melodias do amanhã.
A técnica do artista pernambucano impressiona pelo vigor e criatividade, explorando recursos que parecem infinitos às mãos do gênio negro, vestido com uma colorida bata ancestral e ostentando poderosa cabeleira. Ele viaja dos compositores clássicos às trilhas de desenhos animados, como uma criança que se diverte com desenvoltura com o brinquedo mais familiar. Os amigos que o acompanham ao contrabaixo (Jean Elton) e à bateria (Hugo Medeiros) compõem um power trio de entrosamento campeão, capitaneado por um Pelé do piano — grandiloquente, feroz e sensível .
A imagem de Amaro seduz e fascina. Era um rei no palco, próximo aos palácios governamentais de Brasília. Que bom seria se o eco das músicas que produz vibrasse pelos gabinetes das redondezas, pois o som do pianista é pleno de honestidade, inteligência e faz a beleza inundar a alma. Na plateia, um jovem pacifista fã de Pink Floyd não resistiu, deitou ao chão e contemplou as estrelas, encantado pela magia do maestro, que falou pouco "para poder tocar mais", mas ainda arrancou sorrisos do público em uma breve aula de canto.
O sol não demoraria a raiar quando o show terminou. Os heróis da resistência pediram bis e chegaram a se enganar quando Hugo voltou ao palco, mas apenas para recolher os pratos da bateria. Amaro não retornou. Nem precisava. O céu era negro ainda e o ritual estava completo...
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