O andar, a postura e alguns pequenos segredos de composição de personagem, como uma meia enchida de alpiste para simular o busto, em "seios menos construídos no sutiã", pelo que revela a atriz Dira Paes, trouxeram o caráter externo da personagem-título Pureza, na fita de produção brasiliense que ganha as telas do Brasil, a partir de hoje. "Quando conheci (a verdadeira) Pureza, fiquei curiosa: que mulher, fisicamente, era essa? Alguém que passa quatro dias sem comer, dias sem beber, perdida, no meio da floresta; que trabalha fazendo tijolo, o dia inteiro; se abaixa para pegar lenha, manejar facão, machado e enxada. E até hoje, a Pureza (verídica) é esta Pureza", conta Dira Paes, em entrevista ao Correio. A esmerada produção assinada por Marcus Ligocki Jr. decantou o teor qualitativo. "Sempre tivemos em mente fazer um filme que atravessasse a fronteira da cidade. O tema é universal: uma mãe em busca de seu filho vítima do trabalho escravo contemporâneo. Qualquer cultura, qualquer povo é capaz de compreender o drama desta mulher. A gente tinha este princípio com valores de produção capaz de impactar o público, a partir de uma história tão dramática. É uma história de centena de milhares; não é uma história isolada, infelizmente", observa o diretor Renato Barbieri, da Gaya Filmes, aliada da Globo Filmes, no lançamento de Pureza.
Tendo por "honra" haver participado de 2 filhos de Francisco (do recém-falecido diretor Breno Silveira), Dira Paes equaliza o tipo de sentimento que Pureza e o clássico com enredo sertanejo despertam. "É um ótimo entretenimento para a família. A gente precisa ver um filme como este, uma vez que se cuida do que a gente gosta, e conhece. Com mais de 38 anos de carreira, noto que o Brasil gosta de um filme como o nosso, que tem potência nacional e internacional, a exemplo do Cidade de Deus", avalia Dira.
A protagonista transpira euforia, ao dimensionar Pureza numa escalada do cinema brasileiro, e para Brasília, a felicidade desponta em ver o circuito expandido para além de Rio, São Paulo e Pernambuco. "Ter um filme de Brasília, um cenário tão importante para o cinema brasileiro, me deixa orgulhosa de ter feito parte da produção. Foi tudo muito estruturado, dentro de desafios, e que não eram poucos. Filmamos num local onde houve deflagração de tudo, ao sul do Pará. Tínhamos várias locações, era algo para para um filme grande. Quando li o roteiro, disse: 'a gente está fazendo um filme 'gran-de', e isso imprime na tela. É uma produção robusta", sublinha a mesma intérprete também vista atualmente na novela Pantanal.
Filmado em Marabá (PA) e Brasília, em 2018, o longa contou com talentos vindos do DF, Pará, Rio de Janeiro, São Paulo e Los Angeles. A produção foi articulada em 15 anos, desde que o diretor Renato Barbieri conheceu a história de Dona Pureza, por meio de imagens do fotógrafo Hugo Santarém. A adaptação de parte da vida da maranhense Pureza Lopes Loyola fascinou jurados de festivais (em que foi considerado o melhor filme), no Panamá, no Caribe e na francesa Marseille. Dira Paes, entre outros locais, foi agraciada com prêmios de melhor atriz em Seattle (num evento latino, nos Estados Unidos) e em Salento (Itália).
Premiada
Detalhes como um esmalte vermelho aplicado na protagonista mobilizaram a porção espectadora que ainda reside em Dira, capaz de quantificar um enorme envolvimento com o filme pelo qual obteve seis prêmios de melhor atriz. "Constituímos um longa em que, eu, como espectadora, sinto que parece que a gente abraça o público, e o leva para dentro da trama. Como foi importante mostrar o tamanho daquela floresta retratada e as imensas distâncias daquelas estradas. Há capricho na quantidade de atores, no estudo de direção de arte e muito esforço no deslocamento de equipamentos", pontua a experiente atriz de diretores como Miguel Falabella, Claudio Assis, Jorge Furtado e José Luiz Villamarim.
Ainda que iniciada em assuntos humanísticos e político-sociais, como ressalta Dira, Pureza, no fundo, é um filme. Destacada como "maravilhosa", pelo diretor Renato Barbieri, Dira traz na tela a problemática que atinge países mundo afora, da Ásia às Américas, passando pela Europa. "Não é um filme institucional, é dramatúrgico, cinema elaborado, mesmo. A pesquisa trouxe elementos documentais, junto à realidade. O real, aliás, é autoexplicativo — ele não precisa de bula. Quando as pessoas entram em contato com o real, elas, automaticamente, percebem um monte de coisas. O real nos humaniza, e Pureza é um filme imersivo", explica o mesmo diretor de Cora Coralina — todas as vidas (2015) e As vidas de Maria (2005).
Colocar as pessoas em contato com o drama de Pureza afastou a equipe de teor discursivo e panfletário. A mãe abolicionista fez ressoar questão muito maiores. Fatos inusitados como Pureza enfrentando uma onça, à la heroína que quase dialoga com o sobrenatural ficaram de fora da cinebiografia. O poder de empatia aflora, quando o assunto é Pureza e o debelar de fatores inóspitos. "Pensava: 'Que mulher é essa que consegue sobreviver, entre tantos homens. Como ela resistiu para não ser atacada ou violentada sexualmente'. Esta Pureza teve que criar um corpo em mim. Queria que as pessoas percebessem como ela fez para sobreviver no meio daquela realidade. A Pureza que conheci tinha essas características de resistência muito claras. É uma mulher — simplificando ao máximo, sem 'mulherices' —, digo isso sem ofender a ninguém com esta invenção de palavra (risos). Pureza é uma mulher acima de qualquer vaidade: uma mulher, por essência. Eu pensava: 'não posso chamar a atenção para as formas do corpo. Ela tem todas as formas de uma mulher, mas todos sabiam que ela era uma mulher: ela não estava disfarçada de homem. Que corpo é esse que consegue zerar olhares de desejo e de sensualidade? Busquei parte disso", conclui Dira Paes.
Entre 1995 e 2017, a ação do chamado Grupo Móvel trouxe a libertação de 52 mil trabalhadores brasileiros vítimas de abusos trabalhistas
Em 1997, Pureza venceu o prêmio britânico Anti-Slavery
2018 trouxe o registro, pela Organização Internacional do Trabalho, de 40,3 milhões de trabalhadores no mundo com atividades análogas às da escravidão
Duas perguntas
Thaís Fujinaga, diretora de A felicidade das coisas
No filme de estreia de Thaís Fujinaga, A felicidade das coisas, há a configuração da sociedade que coloca Paula (Patrícia Saravy) em papéis de esposa e mãe, sempre sem a presença do marido. A figura feminina, por sinal, chega ao circuito de exibição de cinema na cidade, desfilando em série de opções para entretenimento e reflexão: de forma leve, personagens despontam em O pai da Rita e Quatro amigas numa fria; com peso de denúncia, no documentário E se eu contar, você escuta?, e mesmo alcança drama, em Miss França, e atravessa filmes de terror como Chamas da vingança e A médium. No filme nacional de Thaís Fujinaga, a diretora comenta ter pretendido complexificar a masculinidade e o feminino representado no filme. "O modo como são retratados os homens foi pensado para ser assim: naturalmente, planejado. A gente vê uma mulher muito oprimida, mas não há violência factível", comenta Fujinaga.
Há risco em assumir narrativas sem grandes reviravoltas?
Quando pensei no projeto, não havia a preocupação específica. Filmes têm diferentes caminhos para se comunicar com o público para além de formatos específicos. Não é necessário ter um filme de ação mais intensa para que haja comunicação. Claro que filmes mais dinâmicos, em formatos clássicos, têm mais ampla comunicação com quantitativo de público. O público para cinema nacional autoral sempre foi mais reduzido, nunca foi o grande público. Mas ele existe. Acho que estamos neste tipo de projeto com espectador mais habituado com obras de olhar particular para situação de ação discreta. Firmei o desenvolvimento da verdade interna e inter-relação humana desenvolvida pelas personagens. É um tipo de narrativa algo contraposta às narrativas correntes dos streamings, com grandes viradas, e que muito bem servem às séries. Filmes podem ser um recorte cuidadoso de uma realidade, numa imersão em universo, por exemplo, que mistura a expectativa e o tédio das férias.
Você objetivou o retrato de um sonho brasileiro com o longa?
Tentei, sim, fazer um retrato possível de uma família entre a classe C ascendente e a classe média, e que faz uma conexão entre um ideal de realidade e o consumo de bens materiais, tudo numa ideia de que, por exemplo, ter uma casa de praia é dar certo na vida e ter uma piscina parece um gesto de fé na felicidade possível.