LUTO

Milton Gonçalves foi pioneiro na luta por espaço para artistas negros

Morre o ator Milton Gonçalves, aos 88 anos, pioneiro da luta pelo espaço para artistas negros no teatro e audiovisual brasileiro

Ricardo Daehn
Naum Giló*
Pedro Ibarra
Giovanna dos Santos*
postado em 31/05/2022 06:00 / atualizado em 31/05/2022 11:20
 (crédito: Renato Rocha Miranda/TV Globo)
(crédito: Renato Rocha Miranda/TV Globo)

Aos 88 anos, o ator Milton Gonçalves morreu ontem, no Rio de Janeiro. A morte se deu por complicações de saúde devido ao AVC que sofreu em fevereiro de 2020. O acidente vascular cerebral isquêmico (falta de corrente sanguínea no cérebro por obstrução de artéria) comprometeu a voz e as pernas de Gonçalves. A família confirmou a morte do ator por volta das 12h30. Ele estava em casa.

Nascido em Monte Santo de Minas (MG), Milton Gonçalves era ator, diretor, cantor, dublador, produtor brasileiro e militante do movimento negro. Vindo de uma família pobre de catadores de café, foi pedreiro, aprendiz de alfaiate, sapateiro, gráfico, até que entrou em contato com o teatro.

A brilhante carreira como ator começou de maneira simples, em um clube de teatro amador, que logo abriu portas para que Gonçalves entrasse em um grupo profissional e se formasse no Teatro de Arena de São Paulo. Na época, escreveu quatro peças, uma delas montada para o Teatro Experimental do Negro. Ali, Milton viria a aprender tudo o que sabia sobre teatro.

O grande militante do movimento negro sempre demonstrou indignação quanto à falta de representatividade de etnia no governo do Brasil, até porque a maioria da população do país é negra. Debates sobre a reivindicação dos direitos civis igualitários constantemente o emocionavam. Durante o período no Teatro de Arena, fez vários espetáculos e escreveu peças que, segundo a visão da época, não era para um negro fazer. Mas o artista provou o contrário e, aos poucos, construía o seu lugar no teatro.

"Poucos têm ideia do que era ser negro numa ditadura. Nesses filmes (Macunaíma e Eles não usam black-tie), havia a real inclusão do povo negro brasileiro, afrodescendentes que dão a mescla de raça detectada em 52% da população, segundo o IBGE", ressaltou o Milton Gonçalves, durante o Festival de Brasília de 2014. Combativo, ele destacou a importância do cineasta Leon Hirszman (do clássico Eles não usam black-tie) que estava alinhado à ideologia do Teatro de Arena. "Eles não usam black-tie é o filme do meu coração. Antes mesmo de ser ator, entendíamos a falta de perspectiva que tínhamos. Aliás, todas as vezes que passa a imagem da homenagem ao meu personagem Bráulio, eu choro. Vejo muito do povo, na cena, da questão dos sonhos e dos fracassos de muitos", destacou o veterano ator.

A trajetória de Milton Gonçalves na televisão se deu a partir da década de 1960, com participação especial no seriado de Ary Fernandes na TV Tupi, O vigilante rodoviário. Participou de obras da Rede Globo como Rua da matriz, A moreninha, Padre Tião e Rosinha do Sobrado. Já os caminhos no cinema abriram-se para o artista ainda em 1958, com a estreia no filme O grande momento. Desde então, Gonçalves passou a balancear trabalhos no teatro, na televisão e no cinema, com maestria ímpar.

Véu de noiva, Um homem que deve morrer, Selva de pedra, Carga pesada, A grande família, Baila comigo, Pecado capital, Irmãos coragem, Tenda dos milagres, Anjo de mim, Zorra total, Brava Gente, O rei do gado, Sinhá moça, Cobras e lagartos, A favorita, Insensato coração, A ilha dos escravos, Segurança Nacional e Carcereiros foram alguns dos trabalhos em novelas, minisséries, filmes e programas de TV que consagraram Milton Gonçalves como nome importante no cenário de dramaturgia brasileira. De escravo e empregado doméstico a doutor e médium, o ator viu na carreira oportunidades de crescer a cada personagem. Foi diretor da aclamada novela Escrava Isaura (1976), folhetim que ficou conhecido internacionalmente.

Porta-voz das Diretas Já, chegou a tentar caminho no ramo da política nos anos 1990, por meio da candidatura a governador do estado do Rio de Janeiro em 1994. Foi o primeiro brasileiro a apresentar uma categoria de premiação no Emmy Internacional, em 2006. Em 2013, foi homenageado no 31º Festival de Gramado pela participação em mais de 100 filmes nacionais.

Repercussão

Com um personagem-chave na série sobre os bastidores da corregedoria da Polícia Militar Força-tarefa, na pele do veterano Coronel Caetano, Milton Gonçalves impressionou o ocasional colega de trabalho Sérgio Sartório. "Filmamos, na rua, por duas diárias. Trocamos experiências e batemos muito texto. Milton dispensava ter um camarim exclusivo, gravava, e ficava o tempo inteiro junto com os colegas que não eram do elenco fixo da série. Um homem gentil demais. Eu interpretava um miliciano corrupto que tinha por objetivo vender segurança e havia uma cena em que ele deveria atirar um maço de dinheiro no meu rosto. Ele realmente ficou preocupado em não me machucar em cena", destaca o artista de Brasília. Ao relembrar que o ator inclusive foi dos primeiros a furar "as antigas barreiras impostas pelo racismo", Sartório complementa: "Fundamental ainda que ele fosse uma figura das artes que sempre soube se posicionar politicamente".

"Parece que morre um pedaço da gente", comenta a escritora e roteirista Adriana Falcão. A autora assina os três primeiros episódios de Filhas de Eva, o último trabalho que Gonçalves fez como ator. Apesar de não ter trabalhado diretamente com ele na última produção do ator, ele teve contato mais direto com Martha Mendonça, Nelito Fernandes e Jô Abdu, Adriana era admiradora da pessoa e do artista que foi Gonçalves. "Milton Gonçalves fez parte da minha vida inteira, muito simpático muito boa gente", observa Falcão. "Existem algumas notícias que eu nunca vou esquecer onde eu estava quando recebi. Um bom exemplo é o ataque às Torres Gêmeas. Este dia com certeza entra para um desses momentos tristes e inesquecíveis", lamenta.

Victor Leal, intérprete dos palcos da capital, e que, no cinema se projetou com Um suburbano sortudo (2016) e O candidato honesto (2014), é categórico: "Milton foi um dos maiores atores que o país já teve e é uma honra pra nós, dos Melhores do Mundo, que um dos seus últimos trabalhos tenha sido Hermanoteu — o filme, onde ele interpreta um cardeal no Vaticano".

"Gostaria de ter a metade da potência desse ator, cidadão brasileiro", declara Chico Sant'Anna, figura conhecida do teatro brasiliense. Chico lembra da defesa dos artistas negros, bandeira levantada por Milton desde sempre. "Ele em cena era fantástico. Era uma inspiração para qualquer ator, independentemente da cor da pele", define o ator. "É uma perda irreparável, principalmente no momento que estamos passando. O Brasil precisa de pessoas com a consciência política que Milton Gonçalves tinha".

O cineasta José Eduardo Belmonte publicou um carrossel de fotos de diferentes momentos da carreira de Gonçalves. "Estou muito triste. Todos nós temos que nos sentirmos honrados por ter convivido na mesma época que um gênio , um mestre. No meu caso particular tive a oportunidade de trabalhar com e ver de perto o seu imenso talento que vai seguir como um farol por gerações", diz ao Correio. O diretor também fez uma homenagem nas redes sociais. "Antes de entrar na faculdade, aos 16 anos, sonhando em viver de cinema, tinha um caderno com atores que admirava muito e queria trabalhar se virasse cineasta. Milton sempre esteve no topo da lista", revela o diretor. "Tive a honra de estar com ele três vezes. Um comercial nos anos 1990, um longa em 2011 e uma série em 2018. Em todos esses momentos , estar com ele era sempre uma aula. Um regozijo ao ver tamanho conhecimento, inteligência e generosidade de um artista com talento soberbo".

O ator brasiliense Sérgio Fidalgo destaca a presença de Milton Gonçalves no hall de atores negros pioneiros na dramaturgia brasileira. "Ele é um dos maiores atores do país. Foi um dos que quebraram as barreiras impostas aos artistas negros, pegando papéis de destaque, geralmente reservado a atores brancos. Milton tinha uma altivez muito bonita, característica que ele trazia para os seus personagens", analisa o ator, que já foi coordenador-geral do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.

"Milton foi um dos atores mais importantes da nossa dramaturgia, principalmente um dos representantes mais relevantes da cultura negra no país", avalia o ator, diretor e professor de teatro brasiliense João Antônio. "A quantidade de trabalhos que ele fez o tornou uma imagem extremamente conhecida e que trazia o reconhecimento da negritude extraordinário, fez personagens das mais variadas possibilidades", complementa e ainda lembra da figura que foi Milton. "Como pessoa era muito simpático. Era um exemplo de bom ator", conclui

A atriz Zezé Motta está entre aqueles que lamentaram a partida de Milton Gonçalves. "Milton Gonçalves era dos mais importantes atores que este país já teve. Milton faz parte da história da TV Brasileira. Um gênio, elegante, brilhante profissional Foram muitos sets juntos, muitas histórias, muitas famílias… O último trabalho que fizemos foi no especial Juntos a magia acontece, que ganhou prêmio em Cannes", relembrou a atriz, nas redes sociais.

*Estagiários sob a supervisão de Severino Francisco.

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  • Cena do filme Eles não usam Black-Tie, de Leon Hirszman
    Cena do filme Eles não usam Black-Tie, de Leon Hirszman Foto: Leon Hirszman Produções/Divulgação
  • Milton Gonçalves, Vera Gerthel, Francisco Milani e Paulo José em Arena contra Zumbi
    Milton Gonçalves, Vera Gerthel, Francisco Milani e Paulo José em Arena contra Zumbi Foto: Cedoc Funarte/Divulga??o
  •  Milton Gonçalves na novela O bem amado.
    Milton Gonçalves na novela O bem amado. Foto: TV Globo/Divulgação

Frase

"Poucos têm ideia do que era ser negro numa ditadura", Milton Gonçalves ao Correio em 2014

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