Literatura

Em entrevista, Pilar del Rio fala sobre a atualidade da obra de Saramago

Ao celebrar o centenário de nascimento do Nobel de literatura José Saramago, a escritora e jornalista Pilar del Rio, com a qual o escritor era casado, reflete sobre a cegueira dos dias atuais

Nahima Maciel
postado em 09/05/2022 06:25 / atualizado em 09/05/2022 06:26
 (crédito: Divulgação)
(crédito: Divulgação)

A escritora e jornalista Pilar del Rio faz um alerta quando reflete sobre o contexto no qual José Saramago escreveu as crônicas de A bagagem do viajante, publicadas em livro no início da década de 1970. Naquela época, Portugal vivia uma ditadura que se arrastava por mais de três décadas. Os textos de Saramago foram escritos sob o peso do autoritarismo real e declarado. Hoje, Pilar lembra que o Ocidente não vive uma ditadura formal e real, embora alguns estados estejam cara a cara com o autoritarismo. "Com o convencimento de que vivemos em democracia, estamos adormecidos, procuramos resolver nosso desespero culpando uns e outros como se nós, cidadãos, não tivéssemos responsabilidades. É preciso refletir sobre o sistema em que vivemos, se isto é uma democracia e qual a qualidade dela", avisa a escritora, viúva do Nobel português autor de romances pungentes como Ensaio sobre a cegueira e As intermitências da morte.

Pilar esteve em Brasília na última quinta-feira para participar de um evento de celebração do centenário de nascimento de José Saramago, morto em junho de 2010. Organizada pela Embaixada de Portugal e pelo Camões — Centro Cultural Português em Brasília, a exposição A bagagem do viajante promove um encontro dos personagens dos livros com personalidades da cultura lusófona em painéis distribuídos por estações do metrô localizadas entre a Rodoviária e Samambaia. Com uma seleção de textos do curador Carlos Reis e ilustrações de Pedro Amaral, Nathalie Afonso, Carlos Farinha e Mathieu Sodore, a exposição é uma espécie de apresentação da obra de Saramago.

Obra que, para Pilar, tem muito a dizer sobre a contemporaneidade. "José Saramago é um autor contemporâneo e a sua obra, que é deste tempo, expressa as nossas perplexidades, desolações e também os sonhos que temos", diz a jornalista. "É um humanista do século 21 que nos representa. Não é que nos dê as respostas, não era um guru, o que encontramos na sua obra é a possibilidade do diálogo e do debate necessário a partir do qual nascem propostas."

 

Entrevista / Pilar del Rio

A bagagem do viajante traz textos publicados entre 1969 e 1973 e contém a preocupação do escritor com um período de opressão e totalitarismo. Coincidentemente, vamos celebrar este livro de crônicas em um período em que o mundo enfrenta uma onda de totalitarismo. Como o livro dialoga com
os dias de hoje?

São tempos diferentes. As crônicas de A bagagem do viajante foram escritas em plena ditadura, um período de ditadura formal e real. Agora, no mundo ocidental pelo menos, dizemos que vivemos em democracia e por isso podemos nos expressar livremente, escolher os governos que queremos, sempre que estejam dentro daquilo que por convenção decidimos ser aceitável. Ou seja, vivemos em democracia e, por esse motivo, o assunto democracia teoricamente não nos preocupa, não questionamos se as decisões tomadas são do povo e para o povo, se fortalecem a sociedade e ampliam o bem comum ou se em realidade o sistema está criando bolhas cada vez mais impressionantes de pessoas que não têm nada, nem presente nem futuro.

Você, Pilar, como tem encarado esse novo ciclo político e social? Tem medo? Enxerga uma saída? Consegue elaborar uma explicação para esse momento que parece propício à instalação de governos de
extrema direita?

Sim, tenho medo, acho que estamos nos aproximando de um abismo civilizacional maior do que pensamos. "Somos cegos que vendo não veem", escreveu José Saramago. As consequências das mudanças climáticas, das políticas equivocadas, da ambição desmedida de grupos econômicos transcontinentais, a ameaça de uma guerra mundial onde os canhões são substituídos por armas nucleares, tudo isso dá medo, mas não me paralisa. Também tenho uma certa esperança, confio na lucidez dos seres humanos e creio que muitos reagirão. Vislumbro sinais de lucidez na nossa sociedade, nos jovens, em pessoas com formação e caráter, nas pessoas generosas. Não é só a nossa vida o que devemos de salvaguardar, são as vidas presentes e futuras, é a vida em si.

 

São 100 anos do nascimento do escritor: na sua opinião, como a obra dele envelheceu? Qual a atualidade nela contida? Como ler Saramago hoje?

Não envelheceu, está mais clara e nítida do que nunca. Olhe qualquer um destes títulos, Ensaio sobre a cegueira, Ensaio sobre a lucidez ou A caverna. Não estamos ali dentro, nesses lugares onde o que importam são os consumidores e não as pessoas? E não é verdade que, embora tudo o que acontece no mundo, nenhum de nós queira morrer e esperamos que o amor nos salve da morte como acontece nas Intermitências da morte? O que falta na nossa sociedade é isso, debater ideais, projetos, aprofundar nas reflexões básicas e fundamentais: se não fazemos isso, se nos deixamos levar pela agonia cotidiana, deixaremos de ter peso como humanidade, seremos um rebanho levado e trazido a mercê dos mercenários.

O século 21 trouxe uma maneira nova de encarar o processo de envelhecer? Como a pandemia trouxe novas perspectivas nesse sentido?

Acho que, se não somos rebeldes, insubmissos, ousados, se, como sociedade, nos limitamos a reproduzir gestos e maneira, envelhecemos — e muito. Se a única saída que vemos é o conformismo, a resignação e a droga, envelhecemos mais depressa. Se nos limitarmos a representar o papel que quem manda no mundo quer nos atribuir, seremos velhos e tristes. Se não nos resignarmos, se mantermos a razão e a consciência em ordem (as duas grandes qualidades humanas), podemos fazer anos, sim, mas nunca seremos material descartável. E podemos, claro que podemos — será questão de vontade — organizar-nos em sociedade.

Como a pandemia vai ou pode mudar a maneira como o homem se relaciona tanto com a natureza quanto
em sociedade?

A pandemia não nos muda, seremos nós, se aprendemos algo, quem construiremos algo diferente. Insisto na frase de Saramago, agora com uma interrogação: Seremos cegos que vendo não vemos? É preciso que os governos e as pessoas aprendam, tirem lições, se é que já não nos esquecemos o que é aprender. Viver a vida e ser feliz a cada dia, é um direito e um dever nosso.

Qual o maior impacto deixado pela pandemia?

Que somos frágeis, muito frágeis, e tampouco queremos nos fortalecer. Que existe a Declaração de Direitos Humanos e não a conhecemos, que somos seres de direito e deixamos que nos tratem como pura estatística, que sendo seres de direitos somos também seres de deveres, e como tal temos que dar as nossas opiniões, pensar projetos, exigir que o dinheiro dos nossos impostos seja melhor aplicado, enfim, conviver. Podemos propor novas formas de convivência. Que bonita palavra: convivência. Espero que agora, no Brasil, ela surja com força depois de tantos anos de egoísmo e desconfiança. Por um futuro plural, livre e solidário: seria essa a lição que poderíamos tirar desse horrível período de pandemia, acentuado pela política da desumanização. 

 

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