Conexões com a natureza que resultam em experiências extremas, um universo pictórico nascido de conversas poéticas e referências em comum, observação de montanhas e fluxos de água na origem de aquarelas e uma compreensão da arte como uma doação estão na base dos conceitos que motivaram quatro exposições que abrem as portas na cidade. Em cartaz na Referência Galeria, no Museu Nacional da República e na Galeria Casa, as mostras reúnem artistas contemporâneos de Brasília de várias gerações e apresentam um panorama da produção recente da capital.
Experiência impactante
Os trabalhos de Gê Orthof nunca nascem de um único fio condutor. Boa parte deles emerge de um emaranhado de memórias fundidas a experiências pessoais que, muitas vezes, levam um tempo para sedimentar e acender que nem fagulha na cabeça do artista. É o caso de nenhum poema brota de uma terra desperdiçada, em cartaz a partir de quinta-feira na Referência Galeria de Arte. Composta de três dioramas, 12 aquarelas e 30 placas poemas, a exposição começou a tomar forma pouco antes da pandemia, quando o artista recebeu um convite para expor em Amsterdam.
A mostra na Holanda não se concretizou, mas a obra, sim. Durante a pandemia, Orthof começou a escrever um livro de poemas relacionados à leitura de um artigo sobre o efeito da tensão criada pela crise sanitária em bebês nascidos nesses anos de incertezas. "Um grupo de pesquisadores identificou que grupos de bebês que nasceram em momentos de grandes tensões compartilham das mesmas patologias fisiológicas e emocionais", conta o artista, "Os bebês nascidos na pandemia apresentariam os mesmos sintomas. Isso me perturbou completamente." Ele pensou então em escrever uma série de versos para os bebês lerem ao se tornarem adultos. "Ajudaria a entender o que vem a ser esse dano gerado por esse grande estresse", explica.
A criação das peças que compõem a exposição veio na sequência. Convidado para uma residência na região sul, o artista passou alguns dias isolado em uma cabana na mata, em Florianópolis (SC). Saiu da clausura no apartamento brasiliense para o confinamento no meio do mato. As baixas temperaturas e a dificuldade para acessar qualquer aglomeração urbana, e logo conseguir serviços básicos e comida, mergulharam Orthof em um misto de reflexão e delírios oníricos nos quais interagia com um polvo e passeava com o pai pelos dioramas do Museu de História Natural de Nova York, uma lembrança de infância que estava dormente e surgiu como um pop up na mente do artista.
Sonhos intensos, memória e presente se misturaram para dar forma às obras da exposição. "A experiência da cabana foi das coisas mais fortes que vivi", conta. "Fiquei num estado de vigilância e conexão com o cosmos. Vivi experiências muito fortes. Contaminado por essa cabana, vem nenhum poema brota de uma terra desperdiçada, depois de dois anos entre a pandemia e um governo que é uma desesperança muito profunda. Acho que há muito tempo não tinha uma experiência coletiva compartilhada assim pelo mundo afora."
Conversas e referências
Isabela Couto foi fazer mestrado no Chile logo no início da pandemia. Pedro Gandra passou boa parte desse período confinado no apartamento em Brasília. E a poeta Mar Becker escreveu o livro A mulher submersa. Numa confluência improvável, o trabalho dos três artistas se cruzou por meio de conversas estabelecidas em decorrência da admiração mútua. O resultado está em duas exposições em cartaz no Museu Nacional da República: Paraíso sem vocabulário, de Pedro Gandra, e Guardadora de água, de Isabela Couto.
Com pinturas saturadas, nascidas de uma interface na qual se misturam literatura e cinema, Gandra criou um universo de cores marcado por um ritmo e uma "agitação cromática" que ele acredita serem frutos de um sentimento ambíguo. "Nesses trabalhos, busco um pulso cromático que acho que é derivado do fato de que, no período da produção, não havia nenhuma agitação na minha vida, havia uma inércia", explica o artista.
A paleta mais pesada, uma presença forte do ambiente noturno e a investigação de saturações de preto, laranja e amarelo dão um ritmo gestual e meditativo às pinturas. Gandra começou a investir nesse universo pictórico ainda sob o impacto da leitura de A mulher submersa, da poeta gaúcha Mar Becker, a quem ele convidou para escrever um ensaio inspirado pelas obras. A partir do convite, teve início uma conversa cheia de troca de referências que acabou refletindo na produção de Gandra. "Partimos de uma série de referências de filmes, como Tarkovski e Kurosawa, especialmente Sonhos, e de literatura, como Guimarães Rosa e Samuel Beckett, que falam sobre limite entre realidade e ficção", avisa o artista.
A poesia de Becker também influenciou Isabela Couto, cujas aquarelas traduzem uma trajetória que começa no Chile e termina em Brasília, passando pela Praia do Forte, na Bahia. Aquarelas feitas sob o impacto da paisagem da cordilheira dos Andes, vídeos que acompanham o desenho da água na areia da praia e um caderno de anotações e desenhos compõem a exposição Guardadora de água. "A gente teve uma sintonia muito forte com elemento água. Desde o início, a gente teve uma conexão de tema, além de uma semelhança sobre como tratamos nossos trabalhos, que é uma coisa meio fluída da mulher, do íntimo, da submersão mesmo, da profundidade, e, às vezes, uma dor escondida, uma coisa que não se fala, meio muda", avalia Isabela.
Arte como doação
Na Galeria Casa, a exposição Amor aos montes — Oferendas reúne obras de André Ventorim, Lelo, Lynn Carone e Marcia Bandeira sob a curadoria de Carlos Silva. O tema nasceu de conversas entre o curador e os artistas. "A ideia foi de doação da obra de arte do artista para o público, como uma oferenda das nossas ideias", explica André Ventorim. "Queremos ofertar a obra para o público como uma retribuição. Uma oferta simbólica."
Para André, a interação com o público sempre foi importante e independe da obra. Mesmo que ela não possa ser diretamente manipulada ou tocada, a interação ocorre de acordo com leitura particular de cada um. "Sempre tento trabalhar para passar o que estou sentindo, o que me veio à cabeça para criar a obra. E o público interage na observação e entendimento", conta o artista, que criou objetos e esculturas para a exposição.
Com a série Monóculos, Lelo propõe uma reflexão sobre o olhar, a invisibilidade e o modo como a sociedade seleciona o que enxergar e o que apagar. A relação do homem com a natureza está em Ofertório e Corpo bicho, uma série de fotografias impressas em fine art assinadas por Lynn Carone. Márcia Bandeira é mais direta na ideia de oferendas com uma obra intitulada Iemanjá, construída com conchas e fósseis marinhos recolhidos em uma praia do Nordeste.
Amor aos montes – Oferendas
Com obras de André Ventorim, Lelo, Lynn Carone e Marcia Bandeira
Visitação até 29 de maio, de terça a sábado, das 14h às 22h, domingo, das 12h às 20h
Guardadora de água
Com obras de Isabela Couto acompanhadas do ensaio poético Nem a nuvem do dizível, de Mar Becker. Visitação até 26 de junho, de terça a domingo, das 9h às 18h30, na Sala 2, Piso Térreo, Museu Nacional da República
Paraíso sem vocabulário
Com obras de Pedro Gandra e ensaio poético O rosto, sumidouro, de Mar Becker
Visitação até 26 de junho, de terça a domingo, das 9h às 18h30, Galeria Térreo, Piso Térreo, Museu Nacional da República
Nenhum poema brota de uma terra desperdiçada
Com obras de Gê Orthof. Abertura dia 5 de maio. Visitação até 9 de julho, de segunda a sexta das 10h às 19h , sábado , 10h às 15h
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