Poesia, romance, livro de viagem, reportagem, ensaios. A produção literária brasiliense recente navega por todos os gêneros e o faz com qualidade. Uma leva de seis livros chega às livrarias e ao streaming. Confira o que há de novidade assinado por autores de Brasília.
Grande sertão: Veredas
Gustavo Castro Silva não classifica seu Felisberto nem como poesia, nem como prosa. Tal classificação, aliás, pouco preocupa o autor. O importante é a origem do personagem, que ele foi buscar em Grande sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. "Felisberto é um personagem meio hedonista, ele decidiu abandonar a jagunçagem para viver com duas mulheres em uma fazenda. Desde que li Grande sertão, me divertia muito com esse personagem", conta.
Desde 2011, Castro trabalha em um projeto de pesquisa para realizar uma biografia de Guimarães Rosa e um dicionário de personagens. "Fiquei tão impregnado com essa linguagem que quis fazer uma espécie de exorcismo e saiu isso. Um poema narrativo, um poema em prosa. O que me atormentava há um tempo era fazer um poema longo, um exercício, e não achava um tema que desse o fio da meada. Então, achei essa voz do Felisberto", conta. Perseguido pela imagem de Felisberto, Castro, que é professor da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (FAC/UnB), cedeu e escreveu o texto selecionado em concurso da editora Urutau para publicação.
Também selecionado em concurso da Urutau, o poeta e jornalista Alexandre de Paula lança o livro de poemas Canções de amor em língua morta, escrito e reescrito ao longo de 10 anos. Com poemas fundados numa linguagem que explora os excessos, as repetições e o "empilhamento de imagens", o autor traz para os versos uma necessidade de encarar a dificuldade da linguagem e a impossibilidade de uma comunicação completa. É a vontade "de encontrar um jeito de dizer mesmo sabendo que, no fundo, sempre ficará algo para trás".
A própria dificuldade de ser lido em um país de desigualdades e deficiências na formação do leitor orientou o poeta na produção dos versos. "Quando eu cheguei à versão final do livro, eu tinha em mente que precisava levar muito em conta essas dificuldades e que precisava estar consciente de que escrever poesia no nosso país é muito provavelmente escrever para poucos ou para quase ninguém", conta. "E isso não parte de uma escolha do autor ou de um lugar de hermetismo, tem mais a ver com as nossas deficiências de formação. Então, o livro tem muito disso de estar gritando para um conjunto de vazios."
Histórias do desastre
Quando a barragem do Fundão rompeu, deixando a região de Mariana (MG) submersa em lama em novembro de 2015, os jornalistas Luana Melody e Victor Corrêa decidiram fazer do desastre o tema de uma reportagem que daria origem a Rejeitos — Vidas marcadas pela lama. Baseado em depoimentos e em uma apuração que começou no ano seguinte à tragédia, o livro tinha como foco ser uma plataforma para reverberar as vozes e a memória das vítimas.
A primeira edição de Rejeitos foi lançada em 2021 e, este ano, a dupla preparou uma nova edição com informações atualizadas. "Conversamos sobre como estava a situação das pessoas e ficamos interessados em saber como estavam as coisas lá neste momento, cinco anos depois, então voltamos a entrar em contato com essas pessoas para entender o impacto do desastre e conseguimos também aproveitar uma entrevista com Ailton Krenak que havíamos feito. Revisitamos o livro com novos relatos e atualizamos com o que conseguimos apurar de novo do que as pessoas tinham falado pra gente", explica Victor Pires.
Ressuscitando um conselheiro
É o conselheiro Aires, diretamente saído do livro de Machado de Assis, quem conduz Homem de papel, o oitavo romance de João Almino. Em uma narrativa cheia de momentos de realidade fantástica, o romance propõe ao leitor que aceite o fenômeno surreal no qual um personagem de um livro se comunica com uma personagem do mundo real. Caso aceite, o leitor vai se embrenhar na história de Flor, uma diplomata que desenvolveu a habilidade de conversar diretamente com o conselheiro criado por Machado.
Paixões que atravessam as páginas dos livros, encontros descabidos, diálogos a meio caminho entre o mundo de ontem e o de hoje, além de um olhar irônico para o universo da diplomacia permeiam Homem de papel numa espécie de exorcismo empreendido pelo autor. "O conselheiro me persegue há muito tempo e já me acompanhou noutras histórias, mas uma questão diferente é saber por que, neste caso, de fato, eu resolvi trazer não apenas o conselheiro, mas o livro como narrador, como personagem, porque é assim que começa o romance", avisa Almino.
Para o autor, a estrutura do novo romance traz uma fabulação presente nos primeiros livros, especialmente Ideias para onde passar o fim do mundo, de 1987.
Relatos de viagens
Durante a pandemia, a artista Fátima Bueno decidiu revistar escritos antigos e se deparou com várias surpresas, incluindo relatos de viagens e pequeninos ensaios nos quais registrava suas impressões. "Tinha muita coisa guardada. E costumo jogar muita coisa fora. Foi um fio que encontrei no meu balaio, no meu baú de guardados. Essas viagens são boas lembranças, acabei encontrando minha trajetória", conta. Desse encontro nasceu Arte como destino — Viagens e conexões, reunião, em livro, dos textos escritos durante as experiências de deslocamentos ao longo da vida.
A primeira parte do livro abrange um período grande da trajetória da artista e a segunda são relatos do que tirou das experiências. "Escrevo diário, é permanente. Escrever é uma maneira de guardar o que aconteceu. É um hábito. Então muita coisa recorri a pedaços de diários antigos, e algumas eu expandi", explica a autora. Ao final de cada texto, ela inseriu algumas palavras escritas nos dias de hoje sobre como está o local visitado e se a viagem seria possível. "Muitos lugares estavam fechados, a edição da Bienal de São Paulo foi adiada, a Flip também. Em muitos casos, essas viagens não seriam possíveis", diz.
Arte como destino —
Viagens e conexões
De Fátima Bueno. Boníssimo
Edições, 132 páginas. R$ 40
Homem de
papel
De João Almino. Record,
416 páginas. R$ 51,92.
Rejeitos - Vidas
marcadas pela lama
De Luana Melody Brasil e Victor Corrêa. Editora Appris, 208 páginas. R$ 88
Felisberto
De Gustavo Castro.
Urutau, 56 páginas.
R$ 42.
Canções de amor
em língua morta
De Alexandre de Paula. Urutau,
88 páginas. R$ 42
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