No audiovisual, os retratos da periferia, volta e meia, desagradam. "A realidade é que as pessoas têm muita discriminação com a comunidades. Quase não se tem voz, a gente não tem oportunidade", avalia a diretora Rayssa de Castro, que leva dois projetos irmanados: com Sobrevivendo no inferno, ao final de março, começou as filmagens de uma série em 12 episódios; enquanto um projeto mais antigo, o longa Rocinha, toda história tem dois lados, está em fase de finalização. Neste último, ela conta com atores como Leandro Firmino (de Cidade de Deus), Sérgio Hondjakoff (que fez a fama com Malhação) e Ricky Tavares. A atriz Claudia Melo estará em ambas produções, alternando papel de policial e de contraventora.
"Quero trazer nas histórias uma realidade que se desconhece e que a sociedade precisa entender que existe. Há gente que precisa muito de uma oportunidade. Todo mundo já falou de favela, e sempre falando do lado ruim — de polícia e bandido, drogas, tráfico, sequestro. Não. A gente mostra personagens reais: bandidos que tiveram sonhos de um dia serem surfistas; bandidos que têm a humanidade de ajudar a comunidade, e policiais também: há os corruptos, mas têm os caras maneiros, e que amam a farda", explica Rayssa que, aos 8 anos, começou no teatro e no circo e, há 8 anos, investe no audiovisual.
"Na minha vida inteira, me dedico à arte. É uma luta muito forte. Ser independente não quer dizer que se lide com produtos sem qualidade. Podemos não ter dinheiro, mas conhecimento e qualidade temos, e bastante", defende a diretora. Retratar moradores que acordam cedo, trabalham e "que ralam pra caramba, em busca de oportunidades" requer esforços. "Com dinheiro, tudo é fácil; sem dinheiro, é realmente loucura — mas sempre digo: só tenho esta vida e quero vivê-la, intensamente", observa a artista.
Nos desafios, vieram as filmagens durante a pandemia. "Paramos, duas vezes, por causa do lockdown. Foi tudo muito, muito difícil, mas nós conseguimos porque a gente não desiste", conta Rayssa, aos 42 anos. Tendo o desafio como lema, a cineasta, há 22 anos atuante numa companhia teatral, comemora a possibilidade de imprimir o dia a dia da Associação de Moradores da Rocinha, no filme, com o toque da arte pretendido pela personagem Clarinha (Mariana de Azevedo), aspirante à atriz, no longa. "O olhar singular representado será o de uma criança que tem a esperança de sair da comunidade, e o que ela mais quer na vida é melhorar tudo para a família", resume.
Humanizar personagens é das metas injetadas nas obras para ampliar um universo em que, como diz, "todo mundo conhece", com bandidos, troca de tiros "e a confusão toda". Moradores, "reféns no meio do fogo cruzado" e aptos a tocar a vida, com felicidade, interessam a Rayssa, cercada por enredos com identidade de gênero, crimes passionais e ressocialização. A produção da série conta com auxílio da Secretaria Estadual de Administração Penitenciária. Mulheres que vivem em condições subumanas puxam a atenção da diretora, que conta, no processo criativo, com presença de ex-detentas. "Pretendo entender e contar vidas de mulheres que, no amor, se sacrificaram pelos parceiros, contar das muitas que roubam 'bobeira' para sustentar os filhos. Não quero passar a mão na cabeça e nem apontar o dedo: quero mostrar a desigualdade", explica.
Realidade local
Imerso na realidade da Ceilândia, o diretor Adirley Queirós é outro artista que não mede esforços para recriar situações de personagens por vezes marginalizados. Foi nesta base que ele conquistou o Grande Prêmio da 44ª edição do festival de documentários Cinéma du Réel (Paris) para o filme Mato seco em chamas, criado ao lado da colega Joana Pimenta. Visto como um filme "radical e apocalíptico", tido como "arma" à condição do nosso presente, Mato seco em chamas foi exaltado pelo júri do festival dada "a intensidade e a combatividade" dos personagens expostos num contexto político. Na trama, desponta o comércio ilegal de gasolina, impulsionado como empreendimento de personagens femininos.
"Os festivais internacionais estão de saco cheio de fórmulas. Querem uma imersão. Acredito no cinema e que, numa ideia de ofício, ele traga relação com histórias que sejam honestas e vivas", enfatiza o diretor que respondeu pelos elogiados Era uma vez Brasília e Branco sai, preto fica. Híbrido na linguagem, Mato seco em chamas foi destacado como ficção ao estrear no segmento Fórum (importante vitrine no Festival de Berlim). "Acima de tudo, é cinema. Defendo a crença de que o cinema pode habitar o mundo do real. Se trata de uma visão que requer trabalho, sem fórmula. Você tem que vivenciar as experiências que aparecem num filme. Nunca apressar o tempo; deve fluir com ele", destaca. Imersão, crença e vivência despontam no processo. "A gente, por exemplo, não faz cenários — a gente filma no meio da rua, cercado pelas pessoas", conclui.
Duas perguntas // Digão Ribeiro, ator
Na pele de um chefe do tráfico, no recém-estreado Alemão 2, o ator Digão Ribeiro conta que defende o personagem, "por mais que ele carregue questões delicadas". No decorrer da trama de José Eduardo Belmonte, Digão se diz impactado pelo rendimento das intérpretes femininas, entre as quais Mariana Nunes e Zezé Motta. "Elas trazem um olhar mais sensível, mas por terem mais cuidado, por terem um tempo diferente e uma urgência em lugares diferentes. Na vivência, a personagem da Mariana reflete os efeitos da implantação da Unidade de Polícia Pacificadora na vida dela. Mulher preta, oriunda da periferia, ela trará necessariamente isso, onde quer que vá. Milhares de mulheres passam por aquelas restrições das personagens e, no filme, trazemos voz e luz para questões delas", observa. De todo o processo das colegas, ele não esquece da enfermeira (Zezé Motta) do enredo que representa o próprio Complexo do Alemão, "com calma e força no olhar".
Você vivenciou algum tipo de violência na vida particular?
Sou nascido e criado na Cidade de Deus, e vivenciei o processo de entrada na UPP. Para além desta violência — para mim, sempre será uma invasão, é como se eles tivessem entrado na nossa casa, mas para não sair mais. Ainda sou um homem preto, negro, né? Gay, de periferia; então estou muito com saldo propício a passar por situações delicadas de violência que já aconteceram. Mas, que tenho a oportunidade de falar e discutir em cima delas pela minha arte, e de tentar transformar tudo, gerando outro efeito na sociedade. Como no Alemão 2, em que se dá voz a personagens muito próximos da minha realidade.
Como você percebe a política num filme que trata de controle?
Sigo as frases prontas como a vida imita a arte; então acho que a arte ajuda a vida. Alemão 2 só é um filme político. É um filme feito por muitas mãos e conseguimos equalizar as nossas buscas naquele filme. Ele é uma denúncia de algo muito grave que acontece todos os dias. A UPP foi um plano de política totalmente datado. Veio com prazo de validade, quando a gente entende que ele veio para maquiagem, para os gigantes eventos que o Brasil iria sediar e os efeitos que esta política de segurança causaram nas pessoas de comunidade são gravíssimos. E há um ciclo vicioso por estarmos em 2022 e com outro projeto de segurança pública sendo aplicado agora, nos moldes muito parecidos com os nossos, sem diálogo e sem conversas com as pessoas da comunidade — do tipo o que seria melhor para elas e o que elas esperam. O que é segurança para elas? Eu assumo nosso filme como a abertura de um diálogo, nos efeitos em que ele possa causar. O cinema tem o lugar do prestígio do coletivo, da tela grande, mas ele tem também um lugar não democrático, de não ser todo mundo a ter acesso a ele. O streaming veio para democratizar. Talvez até de formas ilegais, com hackeio pirata. Com a experiência da série Dom, vimos a experiência da comunidade em que as pessoas hackeavam, na gato net e tinham canais de gatonet que passavam com maratona de episódios. Isso tornou tudo um lugar de maior acessibilidade. Bem ou mal, certo ou errado, as pessoas têm acessos em suas casas; a gente invade e chega noutros lugares. Para gerar diálogo, acho que independente da forma: quanto a mais lugares chegar, melhor.