Crítica // Flee — Nenhum lugar para chamar de lar ####
Fugir, meu bem,
pra ser feliz
A animação bastante distanciada do entretenimento. É neste tom que o diretor Jonas Poher Rasmussen conduz o filme dinamarquês Flee — Nenhum lugar para chamar de lar que expõe divergentes culturas e propósitos, numa narrativa de caráter documental. Curiosamente, o filme rendeu três indicações no mais recente Oscar, no qual foi destacado como finalista em melhor animação, melhor filme internacional e ainda melhor documentário. Perdeu tudo, mas para cada um dos favoritos na categoria, virtualmente, pré-definida.
"Sem interesse em garotas", como ele destaca, o protagonista é Amin, constantemente desorientado, depois de enfrentar interrogatórios, roubos, falta de perspectivas e cargas de humilhação. Até o estabelecimento dele na confortável Copenhague (Dinamarca), Amin cultiva eterno medo de retornar ao que fora seu lar no Afeganistão. Na base de amenos interrogatórios, conduzidos pelo diretor Rasmussen, o real Amin (escondido, no filme, sob pseudônimo) deixa pesadas máscaras caírem.
Excessivamente rígido consigo, o personagem (saído da vida real) tem enorme dificuldade em confiar em outros e se aquieta, na defensiva. Numa versão do passado de Amin, reza a lenda de que teria chegado à Europa, caminhando, desde o Afeganistão. Numa série de digressões, Amin parte para invalidar versões de si. Diante de um emaranhado de mentiras, ele praticamente deixa de existir. A falta de "um futuro decente" para familiares e a doutrinação de pessoas com "poder sobre" a vida dele levaram Amin a renegar parte da existência.
Flee, entretanto, movido a traçados genuínos e a músicas como Take on me (a-ha) e Joyride (Roxette), reforça que relembrar é reviver, e, no caso, de Amin, ter uma segunda chance de viver e experimentar. Criança pouco ortodoxa para perambular pelo opressor sul asiático, por extensão, na fase adulta, Amin encontra a hostilidade, no cultivo da "atração por homens" que ele sente. Ainda jovem, busca um remédio inócuo para um "tratamento", frente à atração juvenil por Chuck Norris e Jean-Claude van Damme. A descoberta da sexualidade é dos pouco momentos mais divertidos dentro de uma narrativa repleta de tensões.
O apoio incondicional dos irmãos aplaina a aspereza que acompanha o protagonista que, para ter sossego, empilha e decora realidades por (e para) ele inventadas. Desde a tomada do poder pelos mujahidin, à época da adolescência, Amin se desvincula da realidade, se vê obrigado a morar ilegalmente na Rússia e a acompanhar um sistema decadente e atopetado de vícios. Numa das cenas mais marcantes (há momentos documentais que registram a realidade, como espécie de de moldura), experimenta-se o desgosto (como espectador) de assistir ao "encanto" do McDonald´s, implantado numa decrépita Rússia. O descaso, por parte de um navio norueguês, que esbarra em um grupo refugiados é outro impactante momento do filme. Até alcançar alguma serenidade, o protagonista vai enfrentar a impotência e os traumas — registrados pelas etéreos cenas de cinzento escuro. Marcante mesmo, será a trajetória, em que, por razões óbvias e humanitárias, jamais supera o testemunho do tráfico de pessoas que ele testemunha.
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