Visitei Hugo Rodas no final de novembro do ano passado. Fui até o belo apartamento na Colina da UnB — com vista para o Lago Norte — a fim de entregar um presente de minha filha Marieta para ele. Uma cesta com vinho, presunto e uns queijos.
Por que Marieta mandava a ele esse regalo?
Em retribuição a um dos últimos trabalhos do sempre generoso Hugo. De Brasília, pela internet, ele havia enviado a Marieta, então morando em Montevidéu, os áudios para um filme que ela (diretora) estava finalizando: Luz del Plata.
Para esse documentário de 25 minutos, Hugo gravou depoimentos de homens que passaram pela famigerada Ilha das Flores uruguaia, seja como imigrantes recém-chegados da Europa, seja como prisioneiros políticos.
Breve explicação. A Isla de Flores, 18 quilômetros distante de Montevidéu, situada no meio do imenso e turbulento rio da Prata, foi, no final do século 19, o local onde os imigrantes europeus — majoritariamente espanhóis e italianos — cumpriam quarentena antes de ingressar no Uruguai. Funcionou também, no começo do século 20, como uma cadeia (inexpugnável) para presos políticos.
Pois bem, com o presente em mãos, fui até o apartamento do Hugo e bati na porta.
Uma voz inconfundível gritou:
- Entra!
Que voz era aquela?
A voz de alguém que falava um idioma desconhecido no Universo, e praticado por uma única pessoa: o Huguês. Uma variante do portunhol, digamos.
Esse linguajar peculiar pertencia a um homem que jamais dominou plenamente a língua da terra de adoção e que perdeu boa parte do seu espanhol de berço. Mas que se fazia entender, sempre. E como! Que potência de comunicação tinha o Huguês! Botou a tremer inúmeras gerações de estudantes de Artes Cênicas da UnB.
- Entra!
Entrei porque a porta, lógico, não estava fechada à chave. Na sala ampla havia uma maca e sobre ela estava deitado Hugo Rodas, quase pelado. A seu lado um senhor grisalho, de pé, o massageava.
Uma cena hugoana.
Quem conheceu a maior figura do teatro brasiliense sabe do que estou falando.
A coisa pode ser melhor resumida assim: um senhor de 82 anos, adoentado, recebia seu amigo de quase 70 — durante uma sessão de massagem — vestindo uma minúscula tanga. Daquelas que o Gabeira popularizou nos anos 1980. E, exibindo um sorrisinho zombeteiro, vasculhou meu rosto em busca de um sobressalto que eu, obviamente, escamoteei. Sempre me finjo de fleumático diante dos meus amigos que pretendem se passar por mais malucos que eu.
O fato é que, pouco antes de morrer, Hugo continuava sendo o mesmo provocador que fora desde garotão. Adorava espantar a burguesia, mesmo que ela estivesse sendo representada, como era o nosso caso ali, por um pé-rapado, eu, guri criado na Vila do Sapo.
Depois de trocarmos meia dúzia de frases ferinas sobre o nosso filho em comum — um ator que ele chamava de El Xu, prestes a ganhar seu quinto filho — me despedi dele. Com as palavras daquela música dos irmãos Ramils: Até não mais...
Bem, pensei muito antes de escrever essa crônica. Até que os sempre nada confiáveis deuses da escrita me sugeriram que principiasse pelo final: essa cena de teatro do absurdo.
Mais castelhano, impossível!
Aproximei-me de Hugo no começo deste milênio quando meu filho mais velho, Juliano, ingressou no curso de Artes Cênicas da UnB. Juliano jura que eu o apoiei nessa decisão insensata. Não estou certo disso, não. Acho que disse o seguinte a ele:
— Tu podes cursar qualquer coisa na Universidade, mesmo que Arte Cênicas, mas o certo é que vais me entregar um diploma de curso superior. Somos de famílias pobres que migraram da Europa para o Brasil. Fui dos primeiros a cursar a universidade. Farás o mesmo.
Voltemos ao Hugo. Identifiquei-me logo com ele porque éramos crias da pampa, aquela verde planície interminável. Ocupada por uma gente cuja franqueza rude (que os tupis erroneamente entendem como grosseria) nunca pode ser totalmente domesticada. Terra de homens bigodudos e mulheres ásperas, que, quando muito carinhosas, assim se referem a seus filhos arteiros:
- Toma jeito, condenado do Inferno!
Além disso, Hugo e eu fomos criados em cidade fortemente industrializadas e lotadas de bascos franceses e espanhóis. Pelotas e Juan Lacaze tinham muitas indústrias no começo dos 1900. A mãe de Hugo e sua incontável parentela trabalhavam em uma fábrica de tecido. Destino semelhante tiveram minha avó Henriqueta e a minha tia Lilia, tecelãs.
Cresci em Bagé, na fronteira com o Uruguai. Havia toneladas de castelhanos por lá. Aprendi a reconhecê-los. Em geral, carregam sempre um pulôver, pendurado nos ombros ou amarrado ao redor da cintura. E Hugo, mesmo em Brasília, sempre trazia um agasalho, ainda que leve. Uruguaios só usam roupas escuras. E o Hugo estava vestido de preto na maioria das vezes em que o encontrei. E suas camisas eram todas de mangas longas. Mais castelhano que isso, impossível!
Quem fala de Hugo precisa, obrigatoriamente, se referir às suas gargalhadas. Que eram muitas e estrondosas. Na verdade, escandalosas. Eram gaitadas que se destacariam até mesmo na gritaria da hora da xepa numa feira de rua paulista.
Hugo compareceu a muitas das badaladas festas de uma certa mansão de Seven One Six North Wing, em geral maravilhosamente descritas pelo maior dos colunistas sociais de Pelotas, o celebérrimo e sofisticado Lawrence Backhouse.
O nosso amigo uruguaio bebia (moderadamente) vinho, comia carne com apetite de antropófago e devorava vários exemplares de todos os doces que estivessem sobre a tolha. De vez em quando, até emitia uns sinais de fumaça.
Na última vez em que nos visitou, Hugo pegou no colo, com a cautela e o desajeito de quem segura uma caríssima taça do mais puro cristal da Boêmia, meu neto Gaspar, então carequíssimo, com menos de um ano.
Numa festa, na rua, na universidade, fosse onde fosse, o tempo todo, Hugo apresentava performances cênicas. Todos seus gestos e seus ditos sarcásticos pareciam ter sido determinados com antecedência por um diretor rigoroso e exigente, ele mesmo.
Para conversar com Hugo nessas festas eu convocava dois falantes do idioma de Cervantes: o cardiologista peruano Juan (casado com Ana, pai dos atores Diego e Tiago Bresani e do médico Rodrigo) e la traductora de mis cuentos, a madrilena Maria de La Paz Barquero Doblas.
Certo final de noite, já bem alegres, Paz, Juan e eu formamos uma junta lexicográfica. Foi então que detectamos a existência daquele dialeto já citado, o tal Huguês.
— Brutal!
Toda vez que se assombrava com algo, e ele vivia se espantando a cada minuto, o Hugo berrava:
—Brutal!
Acompanhando a circulação do Adubo
Voltando. Como Luísa e eu achávamos que era preciso incentivar aquele filho que havia enveredado por tão insólito caminho, fomos a incontáveis peças do Hugo. Em Brasília e outros lugares. Rosa negra, Arlequim, Álbum Wilde e Adubo.
Lembro que fomos à apresentação de Adubo em Florianópolis e Porto Alegre. Na capital gaúcha, no meio do espetáculo, explodiu uma barulheira no fundo da plateia. Era o Hugo que se esparramava pelo chão com suas duas muletas. À época, ele andava com um problema nos quadris, que depois operou.
Adubo foi um dos mais assistidos espetáculos do nosso herói. Parece que já superou as 300 exibições. Trabalho de conclusão de curso — de Juliano, Rosana, Pedro e André —, foi encenado em inúmeras cidades. Minha mínima e modestíssima contribuição — quando Juliano me disse que o tema central da peça seria a morte — foi sugerir a leitura de conto Mateo Falcone, do maravilhoso Prosper Mérimée, que eles transformaram em uma bela tragédia nordestina.
No dia da morte de Hugo, Juliano escreveu: “Tive muitos professores na vida, sigo aprendendo, mas tive um Mestre, um pai em artes, o Hugo. Ele me ensinou a lição mais importante que se pode ensinar a um artista: fugir do óbvio, fugir do clichê, evitar a primeira ideia, buscar a expressão verdadeira e criativa. Ser livre e alegre numa situação de completo estresse que é o palco, ou a cena, aqueles preciosos e fugidios momentos entre o ‘Ação!’ e o ‘Corta!’
Timidez e efervescência
"Também o Érico, meu filho do meio, fez um trabalho com Hugo Rodas. Um curta de 6 minutos, rodado em 2007, intitulado Atrás do muro. Nele o Hugo interpreta o personagem principal, um diretor de cinema — com colete e tudo — que pretende contar a história de duas pessoas extremamente tímidas, um homem e uma mulher. O diretor inicialmente confessa que encontrou vários atores que sabiam representar perfeitamente a timidez, mas que os descartou. Sua pretensão quase inalcançável era achar atores que fossem verdadeiramente acanhados.
O texto é de Murilo Seabra, que divide a direção com o Érico. Acontece que o efervescente Hugo meteu tantos cacos no seu monólogo que o filme acabou ficando muito diferente do planejado. Falada em Huguês, a fita se fecha quando os dois tímidos se casam e têm um filho. Ainda mais envergonhado.
Provocação de Hugo sempre que encontrava Marieta:
— Tu eres mucho bonita, pero tu hermano Érico es mucho mas lindo que tu.
Entrevista amazônica e depoimento
Em 6 de fevereiro do ano passado, enviei a Hugo Rodas por e-mail três textos — uma entrevista, a degravação editada dessa mesma entrevista e a transcrição de um depoimento — que tratavam de um único assunto: ele. Encontrei-os no meu arquivo implacável quando soube que Hugo estava adoentado.
Como surgiram esses três textos?
Foi assim: no começo deste milênio, entre 2001 e 2005, participei da uma publicação que deu muita alegria aos doidinhos que nela trabalharam: UnB revista.
Era feita por uma meia dúzia de jornalistas entusiasmados. O chefe daquele exército brancaleone era o elétrico Armando Rollemberg, o Armandinho, que passava a maior parte do tempo tentando arranjar dinheiro — com seus amigos assessores de imprensa de grandes empresas — para pagar a gráfica. Os redatores éramos Luiz Humberto Mancuzzo e este escriba que vos fala. O artista Nanche de Las Casas, guasca como eu, defendia a beleza do projeto gráfico que nós sempre queríamos destruir. Quem passou por redação, conhece as sangrentas batalhas entre redatores e diagramadores.
Ao longo desses quatro anos rabiscamos perfis de grandes artistas da cidade: do meu querido professor de literatura, grande poeta e amigo Cassiano Nunes; do monossilábico gaúcho de Bagé, mestre dos pinceis, Glênio Bianchetti; e do elegante e discreto Athos Bulcão.
Coube-me fazer um perfil de Hugo Rodas, para o número 11, que sairia em meados de 2005.
Lembro-me de ter acompanhado no começo daquele ano, no apartamento de Hugo Rodas, uma entrevista que concedeu ao professor Marcus Mota, seu colega de magistério na UnB que preparava um livro sobre ele.
Aliás, esse livro saiu em 2010 e nele Marcus Mota publica um vasto e aprofundado estudo sobre a carpintaria cênica de Hugo Rodas. A obra, que traz também trechos da antológica entrevista, biografia e uma vastíssima galeria de fotos, é imperdível para quem quer conhecer em profundidade vivência e labores do castilho-candango.
Pois bem, a tal entrevista — marcada pelo estrondoso estilo amazônico, de pororoca, de uma fala afiada, caótica e desencontrada, porém certeira — rendeu cerca de 10 mil palavras.
Pedi então a minha filha Marieta, na época estudante de jornalismo, que fizesse uma versão mais curta para que eu a usasse na revista. Marieta me entregou um texto de seis mil palavras, ainda imenso, impublicável na revista.
O terceiro texto que encontrei no meu arquivo, totalmente diverso desses dois, era a transcrição claramente editada de um depoimento que obtive do Hugo. Quando e onde? Hoje, passados 17 anos, não sei dizer.
O certo é que, na hora do nervoso encerramento da edição, como sempre, pedi a ajuda de Isaias Caminha, o padroeiro dos jornalistas atucanados. Ele então me sugeriu que recorresse ao Caboclo do Fechamento, bondosa entidade que costuma salvar redatores em desespero.
Então, possuído, psicografei o monólogo — de 2.500 palavras — que saiu na revista e que vem a seguir:
Hugo Rodas:
Eu sou literalmente honesto
O uruguaio Hugo Rodas é dos principais personagens do teatro brasiliense. Há trinta anos na cidade, quinze deles lecionando na Universidade de Brasília, foi o mestre de um grande número de atores que hoje atuam na capital ou em outras cidades brasileiras. Com seu primeiro grupo candango, o Pitu, recebeu importantes prêmios ao longo dos anos 80. Desde 1989 leciona na Universidade de Brasília. Perfeccionista, exigente, é famoso no Curso de Artes Cênicas pelas formidáveis broncas — em portunhol — que dá em seus alunos.
Com seu carregado sotaque castelhano, o ex-protético, ex-cabeleireiro e ex-bailarino de Montevidéu conta muitas histórias neste depoimento que concedeu — numa manhã chuvosa de março, no seu apartamento no campus — à UnB Revista. Dono de uma conversa cativante, marcada por frequentes tiradas irônicas, Hugo Renato Rodas Giusto — nascido em 1939 — fala aqui longamente de sua vida e do seu amor pelo teatro e por Brasília.
Quando nasci o Uruguai era a Suíça da América Latina. Eu me sentia orgulhoso, porque, desde pequeno, sabia que nossa moeda era mais forte do que a brasileira ou a argentina. Mas aquela riqueza foi resultado da Segunda Guerra mundial: ficamos ricos graças à exportação de lã e carne para os povos em luta.
Tem uma história engraçada do meu nascimento. Minha mãe e todas as suas irmãs costumavam escutar radionovelas de emissoras argentinas. Pois bem, em 27 de maio de 1939 estrearia uma novela intitulada “Hoy vá a nascer um gran hombre”. Minha mãe vivia dizendo: “Hugo vai nascer nesse dia”. De fato, eu nasci pouco antes de começar a novela. Eram onze e meia da manhã de 27 de maio de 1939. Os fãs mais fervorosos das radionovelas eram meus parentes por parte de mãe, os Giusto, de origem italiana. Os Rodas eram descendentes de espanhóis.
Tem crianças que nascem com o cordão umbilical enrolado no pescoço, mas eu nasci com o cordão enrolado na testa, pouco acima das sobrancelhas. Como o cordão estava muito apertado, a minha cabeça era praticamente um oito. Em cima havia uma bola com um tufo de cabelos negros espetados. Embaixo, uma outra bola, em que se destacam os olhos muito juntos. Minha mãe, quando me viu pela primeira vez, deu um grito e desmaiou. Eu era parecido com o bebê de Rosemary.
O meu pai era a ordem. Ele me dizia: faz! E eu não tinha a mínima dúvida, obedecia na hora. Mas com minha mãe eu discutia muito, batia boca, era uma briga de igual para igual.
EDUCAÇÃO — Fui criado quase como um aristocrata: estudava três línguas — italiano, francês e inglês — e piano. Mas hoje eu só consigo falar italiano. Acabei odiando inglês e francês. Com o piano eu me reconciliei quando comecei a fazer teatro, mas por muito tempo fiquei longe dele. Esses dez anos de educação rigorosa foram terríveis.
Fui educado em casa. Matriculado numa escola, só fiquei um ano por lá. Eu brigava com todo mundo e todos brigavam comigo.
Aos 14 anos virei um monstro. Meus modelos eram Marlon Brando e James Dean. Começou uma revolução: todos os jovens passaram a vestir jeans, meias brancas, mocassins pretos, calças apertadas de couro. Como não existiam muitas diversões na cidade, a gente bebia.
Tentei fazer as coisas que a minha família esperava que eu fizesse: fui estudar odontologia. Viajei para Montevidéu em 1956, aos 16 anos de idade. Acabei vivendo treze anos por lá.
CACHORRO - Em Montevidéu me aproximei do teatro. Naquela época, havia duas grandes escolas de dramaturgia. Havia a Escola de Teatro Municipal, que reunia as pessoas de mais idade. Eles faziam um teatro em que os atores ainda representavam. Preocupavam-se com o que o ator representava no palco. Hoje estamos muito mais preocupados em mostrar o interior do personagem. A escola mais interessante era o Teatro Circular, formada por gente de esquerda, que fazia um trabalho mais anárquico. Eu adorava teatro de arena, achava o máximo. É um tipo de teatro no qual você não pode representar do mesmo jeito que num teatro italiano. Exigia uma naturalidade de movimento.
Tive professores inesquecíveis, como Osmar Grasso. Foi com ele que realmente começamos a fazer uma experiência sobre Grotowsky, com o chamado teatro pobre. Também fazíamos o que hoje realmente se chama teatro físico. Um dos papéis mais fortes que fiz foi o de um cachorro. Aquilo foi uma revolução.
Para fazer o cachorro, eu levantava às cinco da manhã para escutar os diferentes latidos.
Então, de repente, me vi cansado de teatro e achando que tudo era igual, que dava no mesmo encenar os clássicos ou os modernos. Naquela época, se você entrava numa companhia como galã, você ficava como galã; se entrava como malvado, ficava fazendo o malvado para sempre. Aí apareceu a Graciela Figueroa, vinda dos Estados Unidos, onde havia passado um ano. Ela criou uma série de coreografias que trabalhavam o cotidiano. Era um trabalho que tinha uma consciência política. Você não se sentia simplesmente trabalhando. Você se sentia se explicando e buscando explicações.
BEIJA-FLOR - Não dá pra viver de teatro e fazer teatro todo o tempo. Agora, tenho 16 anos aqui na Universidade de Brasília. Cheguei aqui com 50 anos, mas até aquele momento eu era uma bandeira ao vento. Eu era como um beija-flor, que visitava todas as varandas, mas não ficava em nenhuma. A UnB é a minha varanda.
Estudei odontologia na universidade durante algum tempo. Depois comecei a trabalhar como protético. Também fui empregado público, em Montevidéu. Mas sempre me dediquei ao teatro. Meu pai sofria como um louco por esta minha opção, mas minha mãe sofria um pouco menos. Minha mãe tinha onze irmãos, todos imigrantes italianos, que gostavam de ópera e de teatro.
Durante algum tempo fui também cabeleireiro. A coisa aconteceu por acidente. Eu cortava os cabelos dos meus amigos do teatro. Um dia a principal atriz do grupo — que se penteava com Gerardo, um dos dois mais famosos cabeleireiros de Montevidéu — quis cortar o cabelo, mas o Gerardo não pode atendê-la. Eu me ofereci para cortar e ela topou. Naquela noite, o outro cabeleireiro famoso da cidade, o Walter, foi ver a peça. Depois de ver o meu corte, ele me convidou para trabalhar no salão dele. Fiquei por lá um ano e meio e ganhei uma grana preta. Depois, abri minha própria casa. Eu ganhava muito dinheiro, mas não sabia o que fazer com ele. Não gosto de dinheiro, odeio. O dinheiro entrava pela mão direita e saía voando pela mão esquerda.
WHISKY — Em Montevidéu, fazíamos um teatro de rua muito forte, de denúncia. Andávamos pelos corredores da Universidade Nacional, até que, num certo momento, nos reuníamos num determinado local. Ali parávamos e ficávamos com um espaço reduzido, de um metro para cada um. Então, começávamos a coreografia que se chamava Cárcere.
O Uruguai era e ainda é muito conservador. As pessoas são metidas a nobres. Vá ver o filme Whisky e você vai entender o que é a decadência de um nobre.
QUEIJO — Em 1969, Graciela e eu fomos convidados para trabalhar no Chile, pelo Ministério da Cultura, Fiquei três anos e só saí de lá depois golpe-de-estado que derrubou Salvador Allende. Aquela foi uma experiência muito rica. Nosso teatro era voltado para a população e não para a elite. Quando veio o golpe, ficamos refugiados na embaixada do Uruguai por onze dias. Eu não queria ir para a Europa, porque não era tupamaro, mas — como os partidos políticos uruguaios tinham se tornado ilegais — a volta poderia ser perigosa. Não faltava comida na embaixada, mas o rango era sempre o mesmo: queijo. Nos nossos últimos dias no Chile vivenciamos uma guerra. De repente, um balaço podia furar um vidro da sua sala. Ou a porta de sua casa poderia ser posta abaixo. Nós, estrangeiros, passamos de um momento a outro, a ser tratados como inimigos.
Voltamos ao Uruguai em 1973. Quando cheguei, notei que não havia mais gente jovem. Só estavam ali os velhos e as crianças. Toda uma geração havia emigrado. Foi brutal. Havia um vazio enorme entre as pessoas de dez e as de cinquenta anos.
SORRISOS — Em 1974, nosso grupo foi convidado para participar do Festival de Inverno de Ouro Preto. Quando cheguei lá me surpreendi. Naquela época, Uruguai e Brasil tinham os mesmos problemas políticos, sociais e econômicos, mas a felicidade que descobri no Brasil era impressionante. Acho que só pode ser resultado da influência da cultura africana, que aqui é muito forte. A nossa música popular, o candombe, é de origem africana também, mas o Uruguai tem só uns poucos milhares de descendentes de africanos. A alegria que encontrei no Brasil era o que eu andava buscando há muito. Eu olhava para os brasileiros em Ouro Preto e dizia aos meus amigos uruguaios: “Vejam, eles vivem sorrindo!”.
Quando voltei ao Uruguai, disse a Graciela: “Me desculpa, mas não consigo mais morar no Uruguai”. Eu, que estava lutando para entender a minha vida, havia percebido que aqui, no Brasil, a minha vida teria uma continuação. Graziela acabou fazendo o mesmo. Veio um ano depois e acabou fazendo um belo trabalho de renovação da dança moderna no Rio de Janeiro, com o seu grupo Coringa.
CIGARRAS — Fui direto para a Bahia. Comecei a trabalhar dando aulas. Certa vez, um amigo dançarino, o Clyde Morgan, foi convidado para dar um curso de quinze dias aqui em Brasília. Como não podia vir, ele me indicou. Isso foi em 75. Quando cheguei me impressionei por não ver árvores grandes. Só havia árvores plantadas há pouco. Também me surpreendi ao ver aquelas casas da W3, todas iguais. Aquilo me pareceu uma coisa tão sadia. Imaginei que as pessoas que viviam ali não teriam inveja umas das outras. Imagine só: a casa da frente é igual a sua! Senti que, numa cidade assim, ficava mais fácil reconhecer o ser humano em cada um. Era uma cidade sem frescuras, que não tinha passado porque oitenta por cento das pessoas estavam com menos de 40 anos.
Ao final do curso, eu estava apaixonado por Brasília. Tinha pirado com a cantoria das cigarras. Em certos momentos, eu tinha a impressão de estar vivendo numa estação espacial. Aí, uma garota me perguntou o que eu precisava para ficar em Brasília. Alunos, eu respondi: “Vivo de dar aulas”. Ela disse então: “Pode considerar-se cidadão brasiliense porque tem cinquenta pessoas que querem ter aulas com você”.
Comecei a dar aulas num curso de dança-teatro na sede urbana do Clube do Congresso. Eu utilizava as técnicas que haviam surgido nos anos 1960. Quando eu falava de cintura escapular, ninguém sabia o que era. Eu usava técnicas que tinham a ver com RPG, tai-chi-chuan e caratê. Você tem que aprender tudo o que tem relação com a sua arte. Hoje tem muito de “eu não sei fazer isso!” Comigo não tem essa, eu sempre quis aprender tudo. Desde pequeno, eu queria escrever com as duas mãos, ficava morto de inveja de quem era ambidestro. Esse é o tipo de inveja positiva.
FESTIVAIS — O grupo Pitu surgiu dos meus quase duzentos alunos no Clube do Congresso. Foi a primeira companhia de teatro de Brasília e, na verdade, ela existe até hoje, mas com outro nome. Depois ela se chamou Companhia do Velho Pitu. Agora se chama Teatro Universitário Candango. O Tucan foi a primeira coisa que eu quis fazer quando entrei para a Universidade. Esse projeto foi criado pela Silvia Davini e pela Ana Vicentini.
De 1975 até 1980 eu fiz aqui em Brasília um trabalho de afirmação. Viajávamos muito. Nos festivais de teatro daquela época havia uma verdadeira troca de conhecimentos entre os grupos. Não eram festivais só para entrega de prêmios. Havia aulas, oficinas, grupos de trabalho, apresentações e espetáculos. Você pensava muito bem o que iria apresentar para que os outros percebessem que você tinha trabalhado um ano e que não havia estacionado em seu pequeno sucesso anterior.
No Pitu, encenamos Os Saltimbancos e Senhora dos Afogados, que fizeram muito sucesso. A Casa de Bernarda Alba foi o meu trabalho mais inacreditável porque resumia a minha proposta de teatro-dança. Ali eu mostrava que o movimento pode substituir a palavra. E vice-versa.
Sou considerado um experimentador. Isso é o que me interessa: experimentar!
LOUCURA — Em 1989 me pediram para dar um curso de extensão na UnB. E foi apaixonante. Aí comecei a dar aulas. Eu tinha trabalhado com universitários no Chile, mas não tinha ficado por muito tempo num lugar fixo. Na UnB fui muito bem acolhido por gente como Helena, B. de Paiva, Ana Vicentini, Laís Aderne e João Antônio. Essas pessoas acompanhavam meu trabalho. Aí fizemos o projeto do Tucan. Chamamos o Fernandão para que ele dirigisse o primeiro projeto, no qual eu fazia papel de ator. Depois veio a Bidô Galvão.
Acho que fiz uns sete anos de trabalho na UnB que foram de afirmação da minha loucura; depois, comecei a me domesticar. Fiquei mais preocupado com o que é ensinar, o que significa ensinar. Como se deve fazer para que uma pessoa adquira um conhecimento, uma técnica, uma fé, um amor? Teatro é uma profissão na qual você não pode se tornar independente daquilo que você vive.
O eixo da minha vida é o trabalho. Se paro de trabalhar, o que vou fazer? Vou engordar, vou beber, vou viajar, vou escrever, vou enlouquecer? Tenho que fazer coisas. A minha felicidade depende do meu trabalho. De nada mais. Não sou mais feliz lendo, tocando piano, namorando. E nunca fui. O trabalho para mim é a herança que guardei da então Suíça da América Latina. Vivo feliz com meu trabalho.
Trabalho com técnicas do teatro que vêm muito mais do cinema, que são características do nosso tempo: câmera rápida, lenta, desaceleração. Herdei muito do cinema. Vejo filmes desde que tinha seis, sete anos. Cinema tem coisas que o teatro nunca teve, como, por exemplo, aquela coisa fantástica que é tensão quando a câmera se move lentamente. Aquilo lembra o tai-chi-chuan e a ioga.
ARTESÃO — Não me acho dono de nada, porque hoje você vê tantas tendências. Tudo se copia, tudo se cria. Você fica feliz quando acha que fez algo que poucos fizeram. Mas dificilmente há algo de realmente novo no que você fez. Essa loucura é típica do Brasil: aqui tem muitos inventores de coisas. Não me sinto inventor de nada, sou um bom artesão.
Gosto de viajar de um estilo para outro. Não gosto de um prato só!
A Academia me deu disciplina. Mas acho que minha loucura também foi bastante proveitosa. Sempre me preocupei para que a Academia não me tirasse do meu caminho natural.
É muito diferente fazer um doutorado do que ganhá-lo na mão. A pessoa que faz um doutorado sofre. É uma boa época, mas é sofrida. A vida acadêmica tem uma quantidade de coisas que são boas e benéficas, mas que cobram muito de você. Se você não toma cuidado, essas coisas podem acabar com seu trabalho.
Você precisa de uma coluna para não ser derrubado e isso só o trabalho te dá. É preciso haver coerência entre o que você quer e o que você faz.
O maior ensinamento que meus pais me deram foi ser honesto. Eu sou literalmente honesto. Honestidade, para mim, é uma palavra sagrada."
HUGO RODAS 2022
Redigido de 15 a 18 de abril de 2022. 4.500 palavras.
Notícias pelo celular
Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.
Dê a sua opinião
O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.