Elegante, transparente, dona de uma habilidade ímpar em criar filigranas literárias, patriota, ousada, corajosa. O vocabulário utilizado por escritores, críticos e leitores para descrever a literatura e a personalidade de Lygia Fagundes Telles é invariavelmente enaltecedor. Autora de uma obra que compreende quatro romances e, pelo menos, 20 livros de contos, era conhecida como a dama da literatura nacional, por isso sua morte, na manhã de ontem, fez soar as mais importantes vozes da escrita nacional. Lygia morreu em casa, aos 98 anos, de causas naturais, segundo Lucia Riff, sua agente literária. Aberto ao público, o velório foi realizado na Academia Paulista de Letras (APL), da qual era membro, e, segundo a família, o corpo seria cremado.
Lygia começou a escrever num tempo em que às mulheres eram reservados papéis domésticos. Nascida em 1923, em São Paulo, filha de um advogado e de uma pianista, ela escreveu o primeiro conto ainda na adolescência e, aos 15 anos, estreou em livro com Porão e sobrado, cuja reedição impediria mais tarde. Em entrevistas, costumava duvidar da qualidade desses textos por terem sido escritos por uma menina que pouco sabia da vida. O segundo livro de contos, Praia viva, seria publicado em 1944, quando Lygia contava pouco mais de 20 anos.
Foi, no entanto, uma década mais tarde, em 1954, que ela alcançaria amplo reconhecimento com Ciranda de pedra, uma espécie de romance de formação no qual o desenvolvimento da protagonista Virgínia é uma aula de narrativa com igual equilíbrio entre a construção do personagem e a exploração de seus conflitos existenciais. O livro acabaria adaptado para a televisão em novela de mesmo nome produzida pela Rede Globo em 1981.
Em 1973, Lygia publicou o romance As meninas. Ao contar a história de três amigas, estudantes, moradoras de uma pensão, donas de personalidades completamente diferentes, a narradora se embrenha por temas como sexualidade, drogas, feminismo e ditadura. O romance ganhou o prêmio Jabuti em 1974, feito que Lygia repetiria três outras vezes com livros de contos. "As meninas continua atual ao traçar um painel social e psicológico profundo de três personagens femininos", repara o escritor João Almino, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) e ganhador do prêmio Casa de las Américas. "Nos contos e romances, Lygia foi uma das maiores escritoras brasileiras de todos os tempos, de obra altamente reconhecida dentro e fora do Brasil. Escreveu com ousadia na forma e no conteúdo", garante Almino.
A lista de premiações da autora é uma das mais extensas da literatura brasileira e conta com mais de 16 troféus, entre eles o Prêmio Camões, um dos mais importantes, o da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA), o da Biblioteca Nacional e o Coelho Neto. Em 1982, Lygia tomou posse na Academia Paulista de Letras (APL) e, em 1985, foi eleita para a Academia Brasileira de Letras (ABL), na qual tomou posse em 1987 para ocupar a cadeira 16, deixada por Pedro Calmon. A também acadêmica Nélida Piñon lembra que veio de Lygia e Jorge Amado o incentivo para que ela mesma se candidatasse à ABL. "Além da grande escritora que ela é, porque a obra fica, ela foi um ser exemplar, digna, leal ao Brasil, uma grande cidadã. Era uma pessoa que tinha um espírito cívico, tinha noção do que é uma pátria, uma nação. Ela ingressou hoje com todas as glórias e pompas no panteão da pátria", diz Nélida, ao recordar episódios de luta contra a ditadura nos quais Lygia se envolveu com empenho.
Também companheira de farda na ABL, Ana Maria Machado sempre teve grande admiração pela amiga e escritora. "Pessoalmente, para minha sensibilidade de leitora, é uma escritora do meu coração e de minha mente", diz. "Amo e admiro sem restrições e com entusiasmo — e continuo falando dela no presente, pois é eterna. Discretíssima nestes tempos midiáticos, o fato de estar longe dos holofotes não a diminui. Sua luz própria não se apaga, cada vez mais forte."
Revolucionária
À frente de seu tempo, a escritora se formou em direito pela Faculdade de Direito do Largo do São Francisco, em 1946, e atuou como procuradora do Instituto de Previdência do Estado de São Paulo, pelo qual se aposentou em 1991. Lygia passou por dois casamentos, primeiro com Godofredo Teles Júnior, professor de direito, com quem teve o único filho, Godofredo da Silva Telles Neto, e depois com Paulo Emílio Sales Gomes, cineasta, crítico e fundador do Festival Internacional de Cinema de Brasília.
Na literatura, a especialidade da autora era explorar com maestria o universo psicológico dos personagens, com riquezas de detalhes nas descrições e uma contenção milimétrica para construir o suspense. Nos contos, era reconhecida pela habilidade em criar o clima do ápice da narrativa no momento certo. "Lygia tinha filigranas estilísticas, combinava certa transparência do real com o concreto brutal da realidade. O texto dela podia ser fino e cruel ao mesmo tempo", analisa Nélida Piñon.
Lygia Fagundes Telles influenciou toda uma geração de escritores. Ganhadora do Jabuti com o livro de contos Amoras, Natália Borges Polesso lembra que ficou emocionada ao conhecer a escritora, em 2016. "No ano em que ganhei o Jabuti, ela era a homenageada e eu pude vê-la ao vivo, cumprimentá-la, vê-la falando, então me sinto privilegiada de ter podido escrever ao mesmo tempo que ela, de ter sido influenciada pelos contos, por aprender a amar a literatura com as coisas que ela escrevia", conta Natália.
Carola Saavedra, vencedora do APCA de melhor romance por Flores azuis, conta que Lygia foi uma de suas primeiras paixões literárias. "Uma das coisas que sempre me fascinou foi essa capacidade que ela tinha, de forma muito aparentemente simples, falar de coisas muito complexas e criar climas, ambientes, como se houvesse uma espécie de cenário ou de música ambiente, ou de uma peça teatral, onde aqueles personagens caminhavam e tudo era sempre muito vívido, muito imagético. Ela foi, para mim, uma luz que guiava um caminho muito difícil", diz.
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