Um tapa sem cerimônia

Numa corrente de agressões, verbal e física, o ator Will Smith e o comediante Chris Rock protagonizaram um momento de tensão, durante a cerimônia de premiação do Oscar, a maior celebração do cinema mundial

Não adiantaram marcos históricos — a vitória de No ritmo do coração, um filme inclusivo para a comunidade surda e originado pelas plataformas de streaming (adaptado de sucesso francês) —, nem o forte tom limão siciliano que encheu a tela do número musical de Beyoncé: a 94ª edição do Oscar foi nocauteada pelo tapa recebido pelo comediante Chris Rock, ao incomodar o colega Will Smith com piada dura contra Jada Pinkett Smith, esposa de Will. O incidente será alvo de uma investigação, segundo informou a organização do Oscar, com a possibilidade de sanções a Will.

A meio caminho para 14 milhões de espectadores, a cerimônia, pouco depois da agressão, viu um incremento de mais de 32% entre os telespectadores norte-americanos, que amenizaram o pior desempenho de público do Oscar, registrado no ano passado, quando apenas metade dos habituais 20 milhões de espectadores se deteve na ABC, emissora exibidora da festa. A agressão de Will veio 20 anos depois de ele personificar (com indicação ao Oscar), o boxeador e ativista Muhammad Ali. A vitória no Oscar foi precedida ainda pela indicação (sem prêmio) por À procura da felicidade, em 2006.

No meio da festa de 2022, nem a ameaça de revelação do conteúdo da mala carregada por personagens de Pulp fiction (com 28 anos) causou tanto impacto quanto o fator Will Smith. Depois do escândalo ocorrido — e que foi gerado pelo fato de Chris Rock ter comparado, sem a noção de que Jada apresenta alopecia (uma doença que desponta com rareamento dos fios de cabelo), a esposa de Smith com o personagem careca de Demi Moore, vista no filme Até o limite da honra (1997), coube à apresentadora Amy Schumer tentar apaziguar, se referindo à "energia estranha" que pairava no ambiente da festa. Em 2016, num retrospecto, Chris Rock já havia, durante a edição do Oscars so white, ridicularizado o posicionamento de Jada, à época, boicotado na premiação.

Antes de se acusar como (futura) persona non grata — "Espero que a Academia me convide de volta" —, coube a Will Smith buscar, ao receber o prêmio de ator, a retratação. "Richard Williams (o personagem que lhe rendeu o prêmio) foi um feroz defensor de sua família (...) Eu quero ser um embaixador desse tipo de amor, cuidado e preocupação. É sobre ser capaz de iluminar todas as pessoas", disse, enxugando as lágrimas, no palco. Ao reclamar a proteção das atrizes do filme (que expõe a rigorosa formação das tenistas Serena e Venus Williams), Smith contou da escalada de desrespeitos acumulados na trajetória de artista, e, se calçou, defendendo um basta na hipocrisia que move relações em Hollywood. "Eu pareço o pai maluco como disseram sobre Richard Williams, mas o amor vai impulsionar você a fazer coisas malucas", sublinhou.

Quase que numa condição premonitória, Will (astro que já rendeu mais de US$ 8 bilhões), descreveu, numa recente biografia lançada no Brasil: "Eu sou um homem negro em Hollywood. Para manter a minha posição, não posso ser pego de bobeira, nenhuma vez". No palco do Oscar, junto com Tyler Perry, Denzel Washington plantou parte da semente da concórdia do discurso de Will, frente aos membros da Academia: "No seu momento mais alto, tenha cuidado — é aí que o diabo desponta". O desentendimento entre Chris e Smith (que contracenaram em Arranje um emprego, episódio de Um maluco no pedaço, há 27 anos), parece ter brotado de certezas internas do astro de Homens de Preto, que, no livro, trata da sistemática violência presenciada, quando o pai deixava a mãe dele desmaiada.

Aos 9 anos, como reforça o texto, Will percebeu que o contato com as agressões "definiu" quem seja hoje. Entre relatos de "mimar demais, proteger demais" (as mulheres), o astro conta da "prontidão emocional" com a qual convivia num ambiente de tensão e ansiedade constantes. "Ao longo da minha vida, fui assombrado pela sensação desesperadora de ter falhado com as mulheres que amo", pontua. No livro, ele completa, em torno dos prêmios, reconhecimentos, holofotes e personagens: em cada circunstância, vinha "a série de pedidos sutis de desculpa à minha mãe pela minha falta de ação naquele dia (em que foi espancada). Por ter falhado com ela naquele momento. Por ter falhado em enfrentar o meu pai".

Segue o baile

Com direito à votação popular, o Oscar (indiretamente, via fãs) consagrou Liga da Justiça (no corte do diretor Zach Snyder) como o vitorioso. Quem também destilou todo o apelo junto ao público foi Billie Eilish (ao lado de Finneas), quando entoou a canção vencedora No time to die. Num comparativo feito pelo The New York Times, entre 2005 e 2014, o Oscar, ano a ano, recebeu incremento de 3 milhões de espectadores negros (que progressivamente se viram representados na festa). Daniel Kaluuya, H.E.R., a figurinista de Pantera Negra Ruth E. Carter e Lupita Nyong´o . "Os sonhos se tornam realidade" destacou a intérprete de Anita (Amor, sublime amor), Ariana DeBose, ao receber o prêmio de coadjuvante, vencendo com o mesmo papel de Rita Moreno (em 1962). Ela se afirmou uma lésbica, afro-latina, que "encontrou força, na vida, pela arte". Parecem ter surtido efeito nos números de espectadores, a inclusão de clipes de sucessos incontestáveis da sétima arte (dos 1960 anos da franquia de 007 até os 50 anos de O poderoso chefão); a singela homenagem à estrela de Cabaret, Liza Minnelli (ao lado de Lady Gaga); um vídeo cômico promocional do Museu da Academia, uma nova obra avaliada em mais de US$ 480 milhões, e ainda uma fluente dinâmica com premiação antecipada de algumas categorias e maior potência dos números musicais.

Das dores

A melhor atriz Jessica Chastain (que confirmou o favoritismo, à frente do longa Os olhos de Tammy Faye), atentou para a realidade de uma legislação discriminatória e preconceituosa, constituída em meio a sentimentos de deslocamento nutridos por pessoas LGBTQIA .

Considerada a melhor diretora, a australiana Jane Campion (Ataque dos cães) celebrou com um lema de consideração perpetuado pelos indígenas maori ("Kia ora"), e, no palco completou, ao falar da origem do filme saído da literatura de Thomas Savage: "Ele escreveu sobre crueldade; desejando o oposto: a bondade".

Curiosamente, na festa que depositou grandes prêmios para filmes com temática de núcleos familiares (entre os quais Belfast, que rendeu prêmio a Kenneth Branagh), coube a Kevin Costner reforçar o ideal de filmes cativarem "coração e imaginação" dos espectadores, tendo por exemplo o sucesso de 1963 A conquista do Oeste (que uniu os diretores John Ford, George Marshall e Henry Hathaway). O mesmo espírito ecoou no faroeste (um gênero estritamente norte-americano) Ataque dos cães, que deu Oscar à diretora Jane Campion. Considerado melhor filme, No ritmo do coração também exaltou um universo criado por uma diretora: Siân Heder. O filme da Apple TV, vitorioso, levou o produtor Patrick Wachsberger agradecer à Academia "por reconhecer um filme de amor e família, neste momento difícil em que nos encontramos hoje". Com o longa Amor, sublime amor ,derrotado em seis categorias, o diretor Steven Spielberg foi louvado pelo primeiro ator surdo premiado na festa: Troy Kotsur (de No ritmo do coração). Kotsur sublinhou a qualidade primordial de um diretor, em ser "um comunicador habilidoso". Emocionado, Kotsur lembrou do falecido pai, que tinha imenso domínio da linguagem dos sinais, mas que teve a habilidade comprometida por um acidente de carro.