Daniel Munduruku passou boa parte da pandemia isolado, em casa, em Lorena, no interior de São Paulo, com a família. Perdeu amigos na aldeia, no Norte, mas não teve baixas entre familiares mais diretos. Fez muitas lives, às vezes duas por dia, algumas remuneradas, e escreveu bastante. “Procurei criar conteúdo nos meus canais, fazia lives quase diariamente, às vezes mais de uma, e fui produzindo meus textos, meus livros, criando cursos. Tenho a sorte de ter um pouco de condições materiais para ter sobrevivido a isso. E graças a ter muitos livros publicados, houve também uma certa oportunidade de fazer lives remuneradas”, conta o autor de mais de 30 livros, que realiza, on-line, a conferência A voz e a força da literatura indígena, nesta quinta-feira (10/3), às 9h, como parte da programação da 11ª Jornada Literária do Distrito Federal. A transmissão será no canal da Jornada Literária no Youtube, que receberá também a artista plástica e ilustradora Talita Hoffmann com a conferência A imaginação dos novos leitores na ponta do lápis.
O escritor indígena conversa com o público em uma semana triste e tenebrosa para todas as etnias e para o destino do Brasil. Na segunda-feira (7/3), a liderança do governo na Câmara dos Deputados protocolou pedido para que seja votado, em regime de urgência, um projeto de lei que autoriza a mineração em terras indígenas. A proposta foi apresentada ao Congresso Nacional pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) em 2020 e estava parada até ter início a guerra entre a Rússia e a Ucrânia, em 24 de fevereiro.
Com a suspensão da exportação de fertilizantes da Rússia, parlamentares e governo alegam que a mineração em terras indígenas será necessária para atender à demanda do setor agrícola brasileiro. “O que estamos vivenciando no Brasil é uma guerra muito antiga. Uma guerra desse discurso oficial hegemônico contra a cultura dos povos indígenas, originários. É uma guerra que acontece regularmente, entra governo, sai governo, pode aumentar ou diminuir, mas a discussão existe”, repara Munduruku.
Para ele, o atual governo fez o Brasil retroceder 40 anos no campo dos direitos individuais e trabalhistas e nos direitos dos povos indígenas à terra, à identidade e à organização social. “Esse atual governo conseguiu dar um salto para trás da Constituição. Está agindo como agiram os militares entre 1960 e 1985, tentando saquear a floresta brasileira, a identidade brasileira e aquilo que é parte do nosso patrimônio natural como um todo”, lamenta Munduruku, que usa a literatura para tentar combater o apagamento da cultura indígena da realidade nacional.
Durante a conferência desta quinta (10/3), ele vai falar sobre literatura indígena como instrumento de inserção social. “Minha ideia é fazer com que as pessoas pensem sobre como as sociedades indígenas foram excluídas do processo histórico porque acreditava-se que essa população não tinha o que dizer nem o que contar para a sociedade brasileira”, diz. ”Quero mostrar que, além de estarmos aqui o tempo todo, fomos invisibilizados por uma política que tem uma intenção muito clara de invadir nossos territórios e acabar com nossa identidade.”
Munduruku conta que, quando escreve um livro, o faz com um claro objetivo pedagógico. “Escrevo mesmo pensando em educar, formar, mais do que divertir, entreter. E embora nem sempre as histórias que eu conte levem para uma informação específica sobre os povos indígenas, minha ideia é sempre mostrar que, nos enredos que desenvolvo, há muita semelhança entre o que somos e o que o povo não indígena é”, avisa.
O escritor garante que está sempre trabalhando em algum livro. Atualmente, escreve uma história voltada para a comunidade munduruku do Pará, uma ficção para despertar a juventude indígena para os perigos causados pelo mercúrio usado no garimpo. A saúde indígena é uma das primeiras a sofrer as consequências da prática. “A ideia surgiu com a proposta de ser um material ficcional que permita que crianças e jovens mergulhem nesse universo indígena e percebam o que está acontecendo com ela”, explica o autor.