Com uma série de referências ao cinema e uma breve homenagem ao teatro, o diretor Kenneth Branagh conduz Belfast, longa que estreia hoje, com sete indicações ao Oscar, incluídas as de filme, direção e roteiro original (categoria vencida no Globo de Ouro). Numa linha muito diversa da que apresenta em Morte no Nilo (em cartaz e com direção de Branagh), desta vez, com o novo filme, vem uma carga altamente intimista e pessoal que atravessa a ação de 1969. Pela ótica do personagem Buddy (o convincente menino Jude Hill), o enredo conjuga a vida familiar dele com posicionamentos políticos e religiosos que, às vésperas dos anos de 1970, desembocaram em arruaça e quebra-quebra no dia a dia da Irlanda do Norte.
Entre "matar ou morrer", evocado em situações e na trilha sonora que traz a inesquecível Do not foresake me do filme de faroeste feito em 1952, Branagh aposta num posicionamento agregador, mas não ingênuo. O pai de Buddy é interpretado por um irreconhecível Jamie Dornan (o Christian Grey de 50 tons de cinza), que, junto com a mãe (papel de Caitríona Balfe), ganham o preciso respaldo dos veteranos Ciarán Hinds (premiado com o National Board of Review, instituição tradicional perpetuada por 113 anos) e Judi Dench, ambos candidatos ao Oscar, na pele de experientes e amáveis avós.
O filme, indiretamente, trata de educação, respeito e crenças, daí o brilho de cenas como a que a personagem de Dench abastece o menino com mesada para mimos às escondidas. Do pai, Buddy, a todo momento, ouve: "seja bonzinho, mas, se não puder, seja ao menos cuidadoso".
Entre mínimos delitos praticados por crianças com gosto pelo chocolate roubado (traço que faz lembrar os filmes de François Truffaut) e competições juvenis estimuladas pelos professores até mesmo na escola, Buddy desvendará, com direito a uma cena amplamente influenciada por Cidade de Deus, centímetros do mundo dos adultos. Belfast, entre discursos de segregação e registros de tempos de desemprego, fotografado em preto e branco por Haris Zambarloukos, faz ecoar filmes de diretores sessentistas engajados como Lindsay Anderson (This sporting life), Jack Cardiff (Filhos e amantes) e Karel Reisz (Tudo começou num sábado).
Fugir, uma solução?
Se hoje a rota de fuga para muitos brasileiros afetados por crises aponta para Portugal ou Galeão, na época vivenciada por Kenneth Branagh (e pelo menino Buddy), Sidney, Vancouver e a Inglaterra despontam como possibilidades para que o pai de Buddy, dependente de um trabalho sazonal e com pilha de impostos atrasados, se liberte. Antes, satisfeito com a segurança da família, o pai fica refém dos perigos com a agitação nas ruas, que acirra ânimos entre católicos e protestantes. Sob o olhar vívido, Buddy também testemunha ocasionais diversões simples dos familiares, pelas ruas da Irlanda.
Na jornada do garoto, a música original de Van Morrison (entre as quais Down to joy, candidata ao Oscar) contribui muito para trazer traço nostálgico, que dá espaço ainda para Everlasting love. Na linha algo otimista, Chitty chitty bang bang é outra música que cria clima, numa animada ida de todos a uma sessão revigorante de O calhambeque mágico (1968). Numa breve piada, a mãe do filme, espectadora involuntária de Mil séculos antes de Cristo (1966), fala da importância de o filho ver a estrela Raquel Welch, de tanga, na tela do cinema. Com enorme vibração, Belfast traz no mérito, desde a colorida abertura, tratamento da constituição e da unidade de uma nação e do destino criado pela luta de gerações.
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