Polêmica

Filme de ficção, do comediante Danilo Gentilli, é alvo de tentativa de censura

Determinação da retirada do filme 'Como ser o pior aluno da escola' dos serviços de streaming gera polêmica e é apontada como censura, na visão de artistas, empresas e juristas

Ricardo Daehn
postado em 16/03/2022 06:00
Em obra de ficção, o vilão é interpretado pelo ator Fábio Porchat -  (crédito:  Clube Filmes/Divulgacao)
Em obra de ficção, o vilão é interpretado pelo ator Fábio Porchat - (crédito: Clube Filmes/Divulgacao)

O longa-metragem Como se tornar o pior aluno da escola, lançado nos cinemas há quase cinco anos, tem promovido uma escalada de debates, (sob acusação de censura governamental), e recuperou os holofotes, depois de disponibilizado em plataformas de streaming da Netflix, YouTube (no Google), Globoplay, Telecine, Amazon e Apple. Tudo se deve à cena em que, para muitos, pairam acusações de indícios de apologia à pedofilia. Uma solicitação do ministro da Justiça, Anderson Torres, levou a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), via publicação no Diário Oficial da União, a definir uma multa de R$ 50 mil (diária) para as plataformas que seguirem disponibilizando o filme cômico entre opções de streaming. A "medida cabível" (como imposto em fala do ministro Torres) estipula que multas sejam cobradas a partir do próximo domingo (para as empresas que mantiverem a obra na cartela).

A polêmica a respeito do filme traz uma visibilidade e endossa denúncias de censura, por parte da classe artística. Pelo Twitter, Danilo Gentilli, que assina o roteiro ao lado de Fabrício Bittar e André Catarinacho, tem compartilhado muitas publicações contra a decisão do Ministério da Justiça de retirar a produção do catálogo das plataformas. Em uma das publicações, o comediante diz que desagradar, na mesma intensidade, tanto a bolsonaristas quanto a petistas é o maior orgulho da carreira dele. "Os chiliques, o falso moralismo e o patrulhamento: veio forte contra mim dos dois lados. Nenhum comediante desagradou tanto quanto eu. Sigo rindo", escreveu no post. Ontem, Gentilli publicou uma imagem mostrando que Como se tornar o pior aluno da escola ocupou a quarto lugar entre os Top 10 em Filmes no Brasil na plataforma. Na legenda, o comediante posta uma extensa risada.

A intenção de suspender a veiculação do filme esbarra em fatos extravagantes. Em 2017, o filme obteve classificação indicativa (via Ministério da Justiça) como obra apropriada para adultos e adolescentes, a partir de 14 anos. O mesmo ministério da Justiça, como aponta nota de representantes das plataformas de streaming envolvidas, "hoje manda suspender a disponibilização da obra".

Sob a circunstância de se posicionarem "atentos às críticas de indivíduos e famílias que consideraram inadequados ou de mau gosto trechos do filme", em nota de esclarecimento, tanto as plataformas do Telecine quanto da Globoplay externaram a preocupação com o precedente de censura. As redes entendem que a decisão administrativa do Ministério da Justiça de mandar suspender a veiculação da comédia "é censura". Descumprir a determinação (inconstitucional) é eximir as empresas de compactuar com "uma decisão que ofende o princípio da liberdade de expressão". Mesmo que respeitem a diversidade dos pontos de vista, como destacam no material encaminhado à imprensa, as plataformas "destacam que o consumo de conteúdo em um serviço de streaming é, sobretudo, uma decisão do assinante". "Cabe a cada família decidir o que deve ou não assistir", encerra a nota.

Diretor do Instituto Luiz Gama — integrado por juristas detidos especialmente em questões sobre direitos humanos —, Camilo Onoda Caldas sublinha que a medida extrapola competências do Ministério da Justiça, "nunca autorizado a atuar como censor". "A censura feita pelo governo é ilegal e não se justifica diante do que está determinado pela nossa legislação. Não há que se falar em medida cautelar em relação a um filme que está em cartaz há cinco anos", explica. Na análise jurídica, "independe a qualidade ou não do filme", pontua o jurista.

O caso, como opina Camilo Caldas, içou o governo ao posto de maior divulgador do filme, tornado nacionalmente conhecido, por meio das polêmicas geradas em torno dele. Camilo Caldas completa: "Do ponto de vista político, ironicamente, não podemos deixar de notar que apoiadores do presidente eram entusiastas do filme e só mudaram de posição depois que o apresentador Danilo Gentili se tornou opositor do governo". O Ministério da Justiça, pelo que nota Caldas, tem ciência de que a medida seja abusiva. "Trata-se de uma velha estratégia que se repetiu ao longo do anos: cria-se uma cortina de fumaça sobre uma pauta relacionada a costumes para distrair as pessoas no momento em que a inflação e o preço dos combustíveis dispara", observa o jurista.

Numa corrente que mobiliza ao menos um deputado que, defendendo o teor do Estatuto da Criança e do Adolescente, adotou providências junto à Polícia Federal e ao Ministério Público do DF e Territórios. A reportagem tentou contato, inúmeras vezes, com a produtora Clube Filmes, mas não obteve resposta. Já o Ministério da Justiça, por meio de assessoria, disse que os desdobramentos da decisão do ministério estavam "sob apuração", até o fechamento desta edição do Correio.

Repercussão

Adriana Nunes, integrante da companhia Os Melhores do Mundo, que recentemente lançou a comédia Hermanoteu na terra de Godah nas plataformas de streaming, engrossa o coro dos que zelam pela liberdade nas artes. Ela espera que a ação de proibição seja retirada. "É uma obra de ficção. O Fábio Porchat está interpretando um vilão, no caso. Uma pessoa ruim. Assim como inúmeros vilões de cinema, novela, livros. Apologia defende algo como certo. O que claramente não acontece ali. Não há uma defesa a pedofilia. O que o Ministério da Justiça está fazendo chama-se censura!", comenta. Com mais de 30 anos de estrada na carreira, a atriz observa que o humor mostra o erro, retrata a sociedade. "Infelizmente, esse assunto (pedofilia) está presente nela. É inclusive importante conversar sobre pedofilia! A discussão sobre o tema é válida. Mas censura, nunca! Censura é retrocesso! É encobrir justamente o que precisa ser mostrado. Se está ali, se incomoda, é porque existe", analisa a comediante.

Autora de filmes como a comédia Um assalto de fé (2011) e a comédia Por que você não chora (2020), a atriz, diretora e roteirista Cibele Amaral é incisiva: "É censura, sim. O governo está interferindo no mercado do audiovisual. Isso é algo que não víamos há muito tempo. O cenário é de uma intervenção que, na prática, é censura". Cibele defende que roteiristas, produtores e distribuidores devam se pautar pelo bom senso. "Não é papel do governo exercer censura. Cabe aos pais explicar situações para os filhos, especialmente, por se tratar de um grupo de espectadores vulneráveis", comenta a diretora, que também é psicóloga.

Na condição de mãe e vítima de abuso, Cibele Amaral expressa o absoluto repúdio à pedofilia: "Vejo esse tema como algo que deve ser, sempre, criminalizado e combatido". Ainda que não tenha sido espectadora de Como se tornar o pior aluno da escola, Cibele observa que, efetivada a censura, "o governo teria que regular o YouTube, e todo o conteúdo de informação da internet". "Acho que, com liberdade para se falar, temos sempre que contar com o bom senso e há, sim, limites. Muitas vezes, em roteiros, levo em conta, nos diálogos, por exemplo, o fato de que possam trazer situações de gordofobia e afins. Descarto piadas que não sejam legais ou que não valham a pena", pontua.

"Isso (a retirada do longa) é o absurdo dos absurdos. Cristaliza-se uma forma de tutelar a arte e a cultura. Isso é um traço característico de regimes totalitários. Vivi casos semelhantes, num período em que não havia abertura no regime da ditadura", avaliou o cineasta André Luiz Oliveira. Autor do cultuado longa Meteorango Kid — O herói intergalático (1969), que trazia conteúdo anárquico e de combate à ditadura, André Luiz — que enfatiza não ter assistido ao filme estrelado por Fábio Porchat —, no passado, bem sabe o que configura a censura.

"Hoje, vivemos sob a existência de uma ditadura híbrida com um clima de cerceamento de liberdades. Tentam travar artistas ou pessoas que carregam metas de vidas progressistas que imprimem liberdade e vivência anti-conservadora. Quem tenta viver plenamente a sua época encontra sanção, agressão e tem que desviar da violência, neste mundo polarizado em que há inadmissíveis retrocessos que caracterizariam a estupidez humana", avalia, em torno da censura. Citando a instituição de "gabinetes de ódio" e "medidas meio nazi", o diretor percebe, nas medidas de contenção do governo, um vetor de travamento da "ampliação da consciência e do pleno desenvolvimento do amor e da criatividade". "É o reino de uma ala conservadora e retrógrada que abraça a nostalgia da mediocridade", conclui.

Colaboraram Pedro Almeida, Felipe Macedo e Naum Giló, estagiários sob a supervisão de Severino Francisco.

 

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    Como se tornar o pior aluno da escola: ameaçado pela censura? Foto: Fotos: Clube Filmes/Divulgação e Reprodução/Internet
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    Um duro aprendizado na vida dos personagens da comédia exibida desde 2017 Foto: Reprodução/Internet
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