Heitor Villa-Lobos foi a grande estrela musical da Semana de 22 no Teatro Municipal de São Paulo, mas não foi a única. O Villa que subiu ao palco de chinelo por conta de uma inflamação ainda não era aquele que ficou conhecido por revitalizar e dar uma sonoridade moderna e nacional à música de concerto brasileira. Ao palco, durante os cinco dias de evento, também subiram Guiomar Novaes e Ernani Braga, mas Villa era o único compositor brasileiro no programa. Quem tocou as seis peças escolhidas para o repertório foram a pianista Lucília Villa-Lobos, mulher do músico, e o violoncelista Alfredo Gomes. Os dois faziam parte de um grupo de instrumentistas responsáveis pela execução das peças do compositor.
A música permeou toda a Semana de 22. Além dos recitais de câmara, porque não havia dinheiro para pagar uma orquestra, pequenas inserções musicais ilustravam palestras e declamações. Mas Villa foi o único que recebeu pela participação. "Ele já era famoso, já tinha uma obra muito mais consistente, era o mais velho dentre os jovens, quase com 35 anos, mas longe de ser o nome ultra consagrado, ainda era um jovem batalhando, embora já reconhecido no Rio como principal nome de sua geração", explica Camila Fresca, autora de uma biografia do compositor programada pela editora Todavia para este ano. "O Villa da semana é muito diferente do que será dali a alguns anos."
No livro, a autora procurou cercar a personalidade do músico, atualizá-la e facilitar o acesso do público à figura histórica. "O Villa-Lobos, de um lado, é um dos músicos brasileiros mais biografados de todos e sobre o qual se tem mais trabalhos", explica a autora. "Mas não existem obras recentes para o grande público. As biografias que existem, as mais interessantes, são escritas por musicólogos que, na verdade, fazem um resumo biográfico e se dedicam mais a uma análise da obra."
As músicas selecionadas pelo compositor para o programa da Semana de 22 têm estética muito diferente do Villa Lobos das Bachianas. Ele levou para o evento um conjunto de peças de inspiração francesa, com sonatas, quartetos de cordas e trios, o cânone da música clássica de câmara. Os franceses eram um grande modelo para ele na época, mais que a música brasileira. As duas peças mais diferentes eram as Danças características africanas e o Quarteto simbólico. Este último não tem nada de linguagem popular e nasceu sob influência do simbolismo.
Para Camila, a Semana de 22 foi uma primeira explosão pública do modernismo, mas não é o ponto de partida. "Ele começa antes e em vários lugares, não é uma coisa de São Paulo, está no Rio e em outras partes. A semana acaba servindo como um marco, aglutinando e potencializando. A partir daí, a coisa avança muito em todos os lugares", diz.
A pesquisadora explica que a postura de renovação de linguagem na música brasileira já estava presente antes de 1922, durante a primeira república, quando nomes como Alexandre Levy e Alberto Nepomuceno experimentavam flertar com a cultura popular. Nepomuceno ficou conhecido por inaugurar a canção de câmara em português, por exemplo, mas sempre com contornos melódicos enraizados nas sonoridades praticadas na Europa. "Quando a gente vai ouvir os modernistas, as serestas de Villa ou as canções de Camargo Guarnieri, Guerra Peixe ou Claudio Santoro, não só têm texto em português como estão entranhadas da cultura popular até a lama. E, às vezes, baseadas na melodia popular", explica Camila. "O diálogo com as fontes populares da cultura brasileira se radicaliza, o modernismo libera os compositores para serem radicalmente brasileiros."
As consequências são enormes para a história de todos os gêneros da música brasileira. O movimento modernista se divide em várias tendências e camadas para respingar, ao longo das décadas, por toda a cultura nacional. "A tropicália, o teatro do Zé Celso, eles estão no modernismo, mas mais com o Oswald, do fim da década de 1920, do movimento antropofágico", explica Camila. Já a influência direta de Villa-Lobos, ela encontra no cinema novo de Glauber Rocha, que usa a música do compositor nas trilhas sonoras dos filmes.
Mário de Andrade foi o grande teórico da música brasileira com os livros Ensaio sobre música brasileira (1928) e Compêndio de história da música (1929). "Ele coloca as balizas de como fazer a música brasileira, o que vai simplesmente ser uma discussão ao longo de todo o século 20, seja para apoiar as ideias do Mario, seja para contestar", garante Camila. Movimentos como o música viva, dos anos 1940, o música nova, na década de 1960 e até o armorial de Ariano Suassuna nos anos 1970, uma tentativa de construir uma música de concerto brasileira a partir de formas populares do Nordeste, dialogam com as propostas de Mário de Andrade. "Até a bossa nova está pensando na modernidade da linguagem, se a gente olha para os ritmos, há proximidade com a música de Villa-Lobos", garante Camila.