"Será um recomeço, um renascimento para o grupo", dispara Jovane Nunes, ao tratar de um ponto de virada para a mais tradicional companhia brasiliense de humor: Os Melhores do Mundo, que, no longa-metragem Hermanoteu na terra de Godah, faz a estreia na tela de tevê, justamente na Sessão Superestreia do Telecine Premium (amanhã, às 22h). Vale lembrar que, anos atrás, Jovane e os colegas de trupe — Welder Rodrigues, Ricardo Pipo, Adriana Nunes, Adriano Siri e Victor Leal — encabeçaram um curta, com registro bastante sério: À espera da morte. Hoje, na virada de cenário, o momento é de celebração, ao reavivar, com o diretor Homero Olivetto e o produtor Augusto Casé, uma peça amada pelo público, há mais de 27 anos.
"Estamos felizes com a celebração não só do nosso grupo, mas de todos os artistas. Temos vencido (atravessado) uma pandemia, com a arte", avalia Adriana Nunes. "O Hermanoteu tem mensagens de esperança, de amor e são positivas, algo extremamente necessário nos dias de hoje", pontua Victor Leal. Adriana, que sabe do pendor elitista do teatro, percebe que a companhia, com projeção nacional, é formadora de plateia. "Pessoas que nunca tinham ido ao teatro, depois de ver a gente na internet, passaram a ir. Agora, vamos chegar a um público muito maior do que atingiria somente nos cinemas. O filme vai abrir muito mais caminho, no teatro, para nós também", avalia.
Baseada em filmes épicos, a montagem teatral viralizou na internet. Isso, a tal ponto de, há anos, um DVD com conteúdo da peça ter caído nas graças de uma pirataria desenfreada. Há pessoas que falam o texto, durante a peça; personagens viraram nome de cerveja e de inúmeros animais de estimação — isso além de a capital das repúblicas de estudantes, Ouro Preto (MG), ostentar um estabelecimento batizado de Terra de Godah. Quem ajuda a dimensionar o sucesso é Welder, um dos polivalentes atores e redatores do grupo. Agora, Welder comemora a renovação do público. "Estou ansioso pela reação de quem não sabe nada da gente. Os fãs nos abraçam, em todos os projetos. Teremos uma plateia nova, diante do gigante alcance da tevê", observa o intérprete de Isaac, um astuto guardião de escravas.
Augusto Casé, o produtor, remove qualquer ideia de um filme simples. "É uma produção de época. Filmamos no Vaticano, fomos para as pirâmides do Egito, e a gente ainda foi para o deserto. Construímos uma arena romana!", exalta. Grosso modo, o longa traz as origens e os dilemas de um "hebreu diferenciado", o 13º apóstolo de Jesus, que vem da Pentescopeia.
O segredo da identidade de Hermanoteu permeia o rito de iniciação de um papa, com acesso a restritos pergaminhos. Nesse momento, entra em campo uma tropa de veteranos das telas: Milton Gonçalves, Marcos Caruso e Jonas Bloch. A eles, se junta a inconfundível voz de Chico Anysio. "Deus está presente no filme, na voz do Chico Anysio, que é nosso deus: o deus da comédia", reforça Jovane Nunes, que lembra dos feitos do padrinho do grupo, quando, à época de montagens de plateia limitada, no Rio de Janeiro, Anysio, além de fã, ter se revelado amigo.
Nas filmagens, o clima remontou a eterna vocação estampada no teatro. "A gente fazia de tudo, nos bastidores. Carregamos malas, numa presença que nunca foi só simbólica. Não somos o elenco que senta na cadeira e fica assistindo as coisas acontecerem. Colocamos a mão na massa", explica Adriano Siri. O entusiasmo toma conta, nas explicações de Jovane Nunes. "O filme vai para o universo, vai para o mundo. Na peça, o Hermanoteu é muito passivo: ele pouco faz. As pessoas chegam e conversam com ele, em vários esquetes. Na transposição para cinema, a gente precisou criar uma trajetória para o herói. Há uma transformação em curso", diz.
Sobre a coletiva modéstia, Ricardo Pipo, que dá vida a Hermanoteu, completa: "Entendo muito pouco de atuar — e de cinema, não entendo nada (risos). Muda muita coisa técnica. Imaginava movimentos, nos ensaios em casa, e, na hora das filmagens, mudava tudo. Virei um alicate. Dizia: 'Você quer que eu aperte?", 'que eu gire?...' O personagem é um anti-herói — um bobo, meio passivo. É uma escada, e fica tirando dúvidas com outros personagens. As piadas vêm dos outros". Pelo filme ser uma obra atemporal, os improvisos foram menos constantes no grupo.
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Acima de todos, a graça
As formalidades inexatas de um pretenso português bem falado, um anjo celestial que muito bem poderia ser confundido com um avestruz e o descabido uso de linguajar moderno ("recado tá dado" e "moleque doido" estão entre as expressões usadas) trazem parte da graça do filme. Movendo diferentes faixas etárias e classes sociais, Os Melhores do Mundo têm expectativas do impacto do longa, avalizadas por Victor Leal — "o filme vai abrir ainda mais um público que temos que já é plural. Temos um humor popular, que fala diretamente às pessoas. Antigamente, usavam a expressão besteirol de modo pejorativo. Nosso humor, modéstia à parte, é inteligente e com crítica social bastante aprofundada". Perrengues para atravessar fronteiras, perversas artimanhas inflacionadas de Tributos (personagem de Siri, que, com mexidas sutis nas melenas, ainda dá vida a "Jôta C", uma figura de infinita bondade) e intenções infernais de um pomposo imperador César (Jovane) estão incorporados à jornada de Hermanoteu.
"Ele (o protagonista) peregrina; mas, por onde ele passa, minha personagem já passou antes. Micalateia é viajada", diverte-se, Adriana, que responde por uma personagem, que caiu na boca do povo, mas não apenas por dar aulas de latim. Micalateia é irmã de Hermanoteu, pela vez, o filho de Ooloneia (Carolina Chalita). Welder enfatiza que o filme contempla uma expressão "da moda": fan service. Daí, a realização juntar ao registro de celebridades bíblicas, enredo ampliado, mas nunca descrente de bordões e memes consagrados. Colégios e grupos amadores de Igreja parecem idolatrar o texto, pela chuva de pedidos para as remontagens de Hermanoteu.
Diante das perspectivas do ator Jovane Nunes e do produtor Casé que, respectivamente, defendem: "comédia funciona ou não; é engraçada ou não" e "parafraseando Chico Anysio, 'não existe humor novo nem velho: existe humor ruim ou bom'", dá para se antever os esforços de Os Melhores do Mundo. Expressões como "fazer uma fezinha" e a propensão de personagens terem "sede de vinho e fome de pão", incorporadas ao roteiro do filme, acentuam a graça da fita em que um dos tipos em cena cita até Paulo Coelho. Se, no filme, há citação da abertura, ao meio, do Mar Vermelho, os bastidores das filmagens se encarregaram de outra fenda: "Deus ajudou muito, e o céu abriu", exagera Jovane, ao tratar das chuvas torrenciais que assolavam o Chile (do qual a equipe se espraiou no deserto do Atacama). "As chuvas trouxeram um céu e uma imagem para o filme muito inesperada", completa Siri. Um calor abrasivo, em contraste, acompanhou as filmagens no Rio de Janeiro, em cenário próximo à pedreira de Sepetiba, transformado em arena romana e numa vila da Pentescopeia.
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