Estreia cinema

O visceral cinema de Almodóvar

Almodóvar volta ao universo das mulheres, em Mães paralelas, filme com importantes camadas políticas

Ricardo Daehn
postado em 04/02/2022 00:01
 (crédito:  Netflix/Divulgação)
(crédito: Netflix/Divulgação)

Reconciliação é a palavra síntese que capta o espírito do mais recente filme de Pedro Almodóvar - Mães paralelas -, já no cinemas e presentes na grade da Netflix a partir do dia 18. Encerrado no trecho de texto do jornalista e historiador uruguaio Eduardo Galeano - gabaritado na sentença de que "a história humana se recusa a ficar calada" -, Mães paralelas mescla dores individuais ao compêndio de sofrimento coletivo, diante do capítulo da ditadura de Francisco Franco e das valas reservadas para os chamados desaparecidos (numa escala de 100 mil) da guerra civil espanhola.

Um dado importante para o enredo está na profissão de um dos protagonistas, o arqueólogo Arturo (Israel Elyalde): seu rastro faz eco ao cinema político visto em documentários como O silêncio dos outros e as fitas do chileno Patrício Guzmán, investidos em acertos de contas com o passado. Apesar do tema, com visual solar e colorido (que dá destaque para os esmeros no registro gastronômico), Almodóvar aposta numa visão civilizada. Duas mulheres tomadas por inseguranças da maternidade e interpretadas por Penélope Cruz (vencedora do prêmio do Festival de Veneza) e Milena Smith se conectam em definitivo. Um conflito entre ambas será contornado pela capacidade de reconstruírem as relações.

Musa de Almodóvar em sete longas, Penélope interpreta Janis (nome que celebra Janis Joplin), disposta ao regresso às origens familiares, numa jornada em que pesa o repassar da oralidade de histórias. Depois do envolvimento com Arturo, ela chega, por meio da sororidade, ao encontro de Ana (Simit), solitária como a maioria das personagens do filme, e sem estrutura familiar para a criação da filha recém-nascida.

Nas estantes dos porta-retratos de Janis, molduras vermelhas-vivas contrastam com o preto e branco das fotografias significativas. Rearranjar a vida pessoal e contribuir para a Lei da Memória Histórica (com o implemento de uma Comissão da Verdade) são objetivos de Janis. Num filme distanciado de moralismo, Almodóvar coloca Janis como espécie de tutora para Ana, cuja mãe (Aitana Sánchez-Guillon), empolgada pelo êxito de integrar o elenco de uma peça de Federico García Lorca (vitimado na guerra civil espanhola), se revela distante. Nisso, o filme reforça um tema almodovariano: a falta de zelo com o amor familiar - presente em Julieta (2016) e De salto alto (1991).

Cineasta antenado no seu tempo, o mestre espanhol ainda consegue espaço para - como feito desde o radical Que fiz eu para merecer isto? (1984) - discursar sobre a condição feminina.

Uma estampa de camiseta de Janis conclama: "Deveríamos todos ser feministas". Temas libertários também brotam, com a breve, mas marcante, participação da trans Daniela Santiago.

O desapego gradual de um ente querido também dá o filme um forte sustento dramático como visto em Volver (2006). Hábil na análise dos registros audiovisuais e fotográficos dos próprios personagens que ele manipula, numa linha que contempla Abraços partidos (2009) e Má educação (2004), Almodóvar, em Mães paralelas, segue dominando o tema uma vez que Janes é fotógrafa e monitora o bebê pelas câmeras. Imagens de um celular, na trama, também criam um enorme suspense.

O suspense ainda é reforçado na trilha sonora, a 13a colaboração entre Almodóvar e o compositor Alberto Iglesias (de Dor e glória). Candidato ao Globo de Ouro, ao Bafta inglês e ao César francês de melhor filme estrangeiro, Mães paralelas ainda foi destaque entre o chamado Oscar espanhol, o prêmio Goya, em oito categorias. De quebra, coroa a eterna parceria entre Almodóvar e as atrizes Rossy de Palma e Julieta Serrano, ambas de Mulheres à beira de um ataque de nervos (1988).

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