Elza não tinha medo de ousar na sua música, sempre misturando ritmos e firmando parcerias com artistas de diferentes gerações. Em seu último álbum de estúdio, Planeta fome (2019), um dos destaques é a canção Libertação, com participação de BaianaSystem e Virgínia Rodrigues, e que integrou a trilha sonora da novela da Globo Amor de mãe. Na letra, Elza assume o seu lugar de mulher forte, bem como as protagonistas da trama de Manuela Dias. "Eu não vou sucumbir!", avisa a letra.
O nome do último disco da carreira de Elza Soares tinha um significado além da denúncia do problema da fome que assola uma parcela desprezada da população brasileira, da qual ela mesma fez parte. O início de sua vida foi marcado por muitas dificuldades causadas pela pobreza. Aos 12 anos, foi forçada a se casar. Aos 13, já havia perdido um filho e outro estava entre a vida e a morte. "Eu não tinha um tostão", lembrou Elza durante o Agency Women Leadership Day, evento promovido pelo Facebook.
A situação extrema a levou a se apresentar pela primeira vez em público, no programa de calouros de Ary Barroso, na Rádio Tupi. Ao ver a roupa da jovem toda improvisada com alfinetes, causando risadas na plateia, Barroso perguntou em tom de chacota: "De que planeta você veio, minha filha?". Todos os presentes riram mais ainda, mas a resposta pegou as pessoas de surpresa. "Do mesmo planeta que o senhor, seu Ary. Do planeta Fome". Ali, todos perceberam que o assunto era sério e se calaram para ouvi-la cantar Lama, uma canção forte de Paulo Marques e Ailce Chaves.
Grandes Sucessos
Elza Soares começou no samba, mas principalmente começou do nada. Nascida na favela Vila Vintém, no Rio de Janeiro, em 1930, Elza Soares ascendeu meteoricamente após a participação no programa de Ary Barroso e em 1960 já ganhava a vida com a música. O início da carreira foi no samba, se tornando o nome feminino mais proeminente da época no gênero. Em 1961, estava lançando o disco O samba é Elza Soares, nome que mostrava exatamente o que ela representava para a música brasileira na época.
Foi no samba que se criou e o gênero que mais explorou no início da carreira, mergulhando nos diversos estilos e nuances que o gênero traz. Elza, além de samba, também foi carnaval. Tendo sido convidada em 1969 para ser a primeira mulher a puxadora de samba na avenida de um desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro. Entoando o samba Bahia de todos os deuses, de Bala e Manuel Rosa, a cantora fez história no carnaval tendo sido a primeira a abrir as portas para que mulheres pudessem puxar sambas. Posteriormente, cantou para a escola que torcia, Mocidade Independente de Padre Miguel, além da Acadêmicos do Cubango, Estácio de Sá e União da Ilha. No último desfile da Sapucaí, em 2020, Elza foi homenageada pela Mocidade e atravessou a avenida em um trono como forma de representar toda a grandeza que tem para a cultura brasileira.
As dificuldades que Elza Soares viveu ao longo da vida são impressionantes. Desde a miséria que ameaçava a sua vida e a de seus filhos, até a violência cometida pelos maridos, ela nunca baixou a cabeça para as adversidades. Em 2018, durante uma entrevista no programa do Fábio Porchat, ela relembrou outro episódio de violência que sofreu, dessa vez por parte dos militares no período da ditadura (1964-1985), quando a casa onde morava com seu marido, Garrincha, e os filhos, no elegante bairro do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, foi metralhada por agentes do regime. Nenhum deles se feriu, mas o piano que ficava na sala, onde estavam os filhos pequenos, ficou destruído. O atentado deixou Elza e Garrincha apavorados ao ponto de decidirem ir embora para a Itália, onde foram recebidos por Chico Buarque de Hollanda.
"Nós estávamos dentro da casa (na hora do ataque). Eu morava no Jardim Botânico e brincava com as crianças na rua. Depois, entramos e começamos a ouvir um barulho de tiroteio. Minha casa foi toda baleada. Fiquei completamente apavorada por causa dos filhos, das crianças. Eu tinha um piano na sala, e o piano foi aberto no meio", relembrou a cantora.
Em 2015, Elza Soares ganha um novo caráter ao conquistar os jovens do país com o lançamento do disco Mulher do fim do mundo. Entoando os versos: "Eu quero cantar até o fim/Me deixem cantar até o fim/Até o fim eu vou cantar/Eu vou cantar até o fim/Eu sou mulher do fim do mundo/Eu vou, eu vou, eu vou cantar, me deixem cantar até o fim", a artista deu o recado para o público que jamais seria calada e recebeu o reconhecimento por esse feito histórico com um disco que discute racismo, feminicídio e machismo, lembrado em listas de melhores do ano dos veículos internacionais The New York Times e Pitchfork e tendo conquistado o Grammy Latino de Melhor disco de música popular brasileira também.
Pouco depois, em 2018, a cantora recebeu uma grande homenagem em forma de musical: Elza. Premiada, a produção retrata a vida e carreira da artista passando, principalmente, pelas alegrias da trajetória do ícone da música brasileira. Larissa Luz assinou a direção e protagonizou uma das fases de Soares, que ganhou também interpretações de outras atrizes durante o espetáculo. A última temporada da peça foi feita de forma virtual em 2021, em junho, mês da comemoração do aniversário de 91 anos da estrela.
Ainda em 2018, Elza Soares lançou o disco Deus é mulher, que foi sucedido pelo último lançamento, Planeta fome, em 2019. A cantora seguiu até o final cantando e lutando pelo que acreditava. Consolidada como uma figura que representou a obstinação, a luta, o foco e a coragem, mas sobretudo milhões de brasileiros que queriam ter suas vozes ouvidas por um país que não os dava oportunidades. Elza Soares, como ela mesmo dizia, cantou até o fim para que tantos outros conseguissem encontrar no timbre metálico da cantora um lugar no tão injusto Brasil em que estavam inseridos.
*Estagiário sob a supervisão de José Carlos Vieira