Não há escapatória, quando da definição do que move o trabalho do cineasta Adirley Queirós: tudo deriva da comunidade. Esteio do Coletivo de Cinema da Ceilândia, Adirley, que cutuca a massa cinzenta dos trabalhadores sempre bem representados nos filmes que produz, colhe, no momento, dois frutos únicos na carreira: estará no Festival de Berlim (na mostra Forum, que valida o cinema experimental) e é o grande homenageado da 25ª Mostra de Cinema de Tiradentes, que traz 169 filmes em caráter on-line (https://mostratiradentes.com.br).
Feito em parceria com Joana Pimenta, Mato seco em chamas, produto de coprodução com Portugal, explora os limites entre ficção e realidade. Na trama, um grupo de mulheres, trabalhadoras de um posto de gasolina, vivencia a inusitada descoberta de petróleo em Ceilândia. As personagens prometem tomar a frente do comando de um temido grupo de contraventores, ocasionalmente, preso. Com artistas brasileiros escolados em festivais internacionais, casos de Paula Gaitán e do provocativo diretor Gustavo Vinagre, Adirley fará a estreia na chamada Berlinale — o festival germânico que ocorrerá entre os dias 10 e 20 de fevereiro.
Partidário do cinema independente, Adirley, há 16 anos, reflete, sem panfleto, a necessidade de transformações sociais, em filmes como Rap, o canto da Ceilândia (2005) e Branco sai, preto fica (2014). Uma década depois de premiado com A cidade é uma só, na mostra Aurora, dedicada ao cinema mais arrojado da seleção de Tiradentes, o engajado diretor retoma o fio da meada, celebrando o cinema de transição proposto na atual edição do evento mineiro.
Na boa onda do atual momento, Adirley passou praticamente duas semanas em Portugal, concluindo um filme e ajustando detalhes de Mato seco em chamas. Além de Berlim, o filme já chamou a atenção da curadoria de outro festival europeu mantido em segredo. Se chegou tarde no acesso à Universidade de Brasília (UnB), tendo se formado aos 35 anos, sob orientação de Dácia Ibiapina e entusiasmo de professoras como Érika Bauer, Adirley Queirós, sem demora, vê o talento dele, progressivamente, ganhar o mundo.
Como turista, em Portugal, em comparação com o Brasil, como vê a questão da covid-19?
Entendo que estão achando que virou uma endemia. Estão dizendo, pronto: quem está vacinado não precisa mais se preocupar com nada. O país aqui (Portugal) tem alto índice de pessoas vacinadas. Há muitos casos de covid-19, mas quase não se ouve mais falar de mortes. No Brasil, estou muito receoso, desde o começo, com a covid-19. Não vou para quase nenhum lugar, praticamente não saio — pouco me relaciono socialmente. Quanto aos dados da pandemia, depende muito de qual o meio de comunicação que nos mantém informado. Morreu muita gente na Ceilândia, foi a cidade em que mais morreram no DF... É muito triste. Mas a leitura que eu tenho, no Brasil, é ter medo de pegar covid-19. Em Portugal, as pessoas que circulam, não têm mais esse medo todo. A regra é que a maioria das pessoas vai passar por isso.
Você trará um filme inédito para Tiradentes?
Sim. Foi feito com o Cássio Fernandes. Fizemos um material audiovisual, em 2016 — no ano do golpe na Dilma. Filmamos uma série para a TV Brasil. Houve um edital muito grande para várias séries regionais. A maioria das séries feitas praticamente não passou — foi logo que o Temer assumiu, pouco antes do Bolsonaro. Houve um bloqueio para estas séries que tinham questões de gênero, território, casos indígenas. Salvo engano, a nossa passou uma vez, e de madrugada. De dois episódios dela, fiz uma remontagem com material de sobras. É tudo muito despretensioso, e foi feito para a abertura das exibições. É um material bom, muito simples e que merece ser visto. Praticamente, na obra, tratamos de lutas por terra e moradia própria. Filmamos, entre o ficcional e o documental. Circulando em torno do MST, com ideias do Movimento dos Sem Teto também. Acompanhamos o cotidiano deles, com três personagens que anunciam numa rádio as notícias daquele ano: como se você estivesse na semana em que houve o impeachment.
Já é a hora de homenagear o Adirley? O que faz teu cinema único e diferenciado?
Antes de tudo, estou muito honrado: Tiradentes é um festival que, para o tipo de filme que faço, num movimento de geração, para mim, é o mais importante que existe.
Não tenho clareza se é a minha hora. Não consigo olhar para trás, em relação ao que fiz, em termos de produção de cinema. Tenho clareza de que meus últimos filmes influenciaram o Brasil todo, de certo modo. Quase todo dia, recebo uma tese sobre meus filmes, desde graduação a mestrado, doutorados. Cursos do Brasil, Argentina, Paraguai. Vem material da América Latina e da Espanha. Influenciei uma geração de pessoas que estão fazendo filmes. De alguma forma, houve conexão.
O que te motiva, em cinema?
Para mim, cinema virou uma espécie de ofício. Eu tenho que estar produzindo alguma coisa, senão eu não consigo sustentar minha família. O que me motiva fazer esses filmes acho que ainda é, acima de tudo, o encontro com as pessoas, o encontro com os personagens que são os personagens da minha juventude, da minha infância — daquele meu rolê em Ceilândia: das esquinas, dos campos de futebol, dos tempos que passei desempregado. O encontro com essas pessoas, com essas histórias é o que motiva, e a tentativa de contar essas histórias, da forma mais conectada possível, com a minha memória, sem me preocupar se essa conexão está, ou não, no tempo do que é um filme, hoje. Num exemplo: não estou preocupado com Netflix — que traz uma linguagem contemporânea, uma linguagem diferente do que a gente faz. Não trago linguagem formatada para que vire esse padrão! O que me motiva é isso: fazer os meus filmes, na tentativa de buscar aquela linguagem da memória mais da quebrada, maloqueira. É isso que me motiva. Gosto é disso.
Você se vê como uma peça de continuidade do Cinema Novo?
Se eu falasse isso, seria arrogante: não consigo. Gosto do cinema, por exemplo, do cinema marginal. Hoje em dia, é muito mais potente: Sganzerla e da galera que veio depois. Andrea Tonacci, Joaquim Pedro de Andrade, Glauber Rocha: essa galera me motiva no cinema. O que eles fizeram me motiva muito. Contemporâneo não tem muito alguém assim, da minha geração. Não tem algo assim, além desses caras.
Como tem sido sua rotina?
Trabalho todos os dias, é meu ganha-pão. Escrevo e leio; leio bastante, leio mais do que vejo filmes. Gosto muito de literatura. Tem coisas que reli várias vezes, desde Grande sertão: veredas, A peste, O estrangeiro, Os irmãos Karamazov. Tenho lido o argentino Ernesto Sábato. Ele é incrível, reli muito do processo dele, recentemente, em cinco livros que caracterizam a obra.
Como tem notado a pandemia?
Na pandemia, há sentimento que é muito dolorido: todo mundo passa por isso; há muita solidão. A pandemia evidencia situações de classe: sempre foi assim. Você percebe, morando na periferia, dados de quem são as pessoas mais afetadas com a pandemia. A discussão sobre quem pode (economicamente) se isolar, quem não se isola, como a política influencia tudo isso. No sentimento, carrego solidão e muita revolta. Fico revoltado de como pessoas pobres ficam expostas e de como a relação com os hospitais é muito mal descrita. A gente sacou, só agora, o quanto que o SUS foi sucateado. Pessoas pobres têm o SUS e o hospital público, sendo as mais expostas. No meu caso, mesmo nas dificuldades, sou meio privilegiado, por estar fazendo cinema. Mesmo morando em Ceilândia, sobrevivo sem me expor, mas muitas pessoas próximas de mim, inclusive parentes e amigos, se expuseram muito. Isso me tocou muito. As coisas são muito mais violentas, dentro de um estado de calamidade e que não é igual para todos: muito pelo contrário, ela se explicita muito mais para pessoas pobres.
Qual é a tua relação com o ensino?
Gosto de dar oficinas. Dei muita aula virtual nessa pandemia. Muita aula para coletivos do Brasil todo: da periferia dos paulistas até a do Amazonas, debati com pessoas do Mato Grosso. Falei com comunidades indígenas, com ribeirinhos, eles me convidavam e eu ficava ali, dando oficinas. Gosto muito dessa parte -- é a parte que eu mais gosto assim de verdade. Curto passar o que eu sei, da forma que eu sei fazer e do modo que gosto para quem gostar de ouvir. Isso me empolga muito.
O ano de 2022 propõe muita política. Como vê isso?
Acho que só a política salva. Nunca sou desesperançoso com ela. Temos que ir para a disputa política, sempre. É o único caminho possível para a gente exercer nosso lugar de produção, de criação e de cidadania. Acredito que o ano seja fundamental para reverter um processo violento que está aí, contra bases conquistadas, como educação, cultura, saúde e o acesso à universidade. Tudo isso, de certa forma, foi bloqueado por este governo. É um momento em que a gente tem que lutar por um momento de um país novo. É um ano de lição. Temos que colocar energias nessa disputa, há muitas possibilidades de revertermos o que está aí nesse momento, e apontar para um outro lugar. Temos que nos mobilizar para defender o que vale a pena; nunca achei que houvesse época tão propícia para isso.
Houve evolução, na tua produção, em termos de criar cinema para hoje, quando revê teu passado?
Na real, faço do mesmo jeito. Para mim, o quê muda muito é a vontade que tenho de experimentar linguagem. Mudou muito e ficou mais clara a motivação de, cada vez, radicalizar mais na experimentação. A forma de fazer, é exatamente a forma de fazer, anteriormente. Acontece que, quando há edital para cinema, há mais chance de pagar melhor as pessoas. Para mim, não mudou muita coisa a forma de produção. Nem tenho essa vontade, inclusive. Para mim, não há conceito de evolução em, por exemplo, trabalhar num esquema aos modos do proposto pela Globo Filmes.
O que você acha de orçamento para filme nacional?
É muito relativo um orçamento grande, já que numa produção grande, se consome. No Brasil, tudo é pequeno em orçamento. Depende da matemática que você faz, quando se tem 200 pessoas empregadas, nada se torna tão grande em cifras. Nunca teremos a grana que têm os filmes americanos. A gente quer ser o filme americano, mas nunca vai ter o dinheiro da grande indústria, seja coreana, americana ou francesa. Não adianta querer ter esse tipo de produção. O orçamento depende do modelo de produção.
Quanto custa o cinema da periferia?
Basicamente, quando a gente tem dinheiro, trabalhamos com o edital do Fac (Fundo de Apoio à Cultura). Se o Fac oferece R$ 400 mil, é R$ 400 mil; se oferece R$ 100 mil, é R$ 100 mil; nunca passa disso. Para o tipo de filme que a gente faz, é possível fazer um filme assim, um bom filme. É possível ter vários bons filmes, com o Fac. Depende do teto que eles oferecem. Se for perto de R$ 800 mil ou milhão, muitas pessoas conseguem fazer filmes. E há muitas pessoas muito boas. Nunca houve um tempo de tantas pessoas tão boas. São bem melhores do que antigamente. Não falo só de brasiliense. Há muita gente nova fazendo, no geral. É muita gente boa nas periferias. Tem muitos artistas novos experimentando. Tem que ser mais capilarizado o investimento. A não ser que a gente caia nas graças de um mecenas internacional — eu também, algum dia, posso cair; há pessoas que gostam dos meus filmes. Quem sabe, um dia, eu não caio?! Por enquanto, a criação de ofício, com cinema, é por meio de lei de incentivo cultural. O teto é estabelecido pelo orçamento proposto por edital. É isso.