Thiago de Mello, um dos poetas mais influentes do país e ícone da literatura regional amazonense, morreu ontem, aos 95 anos. A informação foi dada pelo escritor Sérgio Freire via internet e logo foi confirmada pelos veículos de imprensa. O poeta morreu em casa, em Manaus. A causa da morte não foi divulgada.
Amadeu Thiago de Mello nasceu em Barreirinha, município no interior do Amazonas, em 30 de março de 1926. Aos cinco anos, foi com a família para Manaus, onde iniciou os estudos no Grupo Escolar Barão do Rio Branco e, em seguida, no Ginásio Pedro II. Anos depois, se mudou para a então capital, Rio de Janeiro. Em 1946, ingressou na Faculdade Nacional de Medicina, mas abandonou o curso para seguir a carreira literária.
O escritor debutou em 1947 com o volume de poesias Coração da terra. Em 1950, teve o poema Tenso por meus olhos publicado no jornal Correio da Manhã, famoso periódico da época. Nos anos seguintes, lançou uma trinca de livros que o consolidariam: a obra Silêncio e palavra, aclamada pela crítica, chegou em 1951; em seguida, Narciso cego, de 1952; por fim, A lenda da rosa, de 1957.
Adido cultural
Em 1957, recebeu o convite para dirigir o Departamento Cultural da Prefeitura do Rio de Janeiro. No final da década de 1950, foi adido cultural, espécie de funcionário diplomático a serviço da cultura, na Bolívia e Peru. No início dos anos 1960, ainda pré-ditadura, mudou o foco do trabalho para Santiago, no Chile. Por lá, conheceu o célebre poeta Pablo Neruda, de quem tornou-se amigo. A relação serviu de início para a carreira de tradutor de Mello, que trabalhou em trazer para o português uma antologia poética do autor.
Ditadura militar
Com o golpe militar brasileiro de 1964, Thiago se afastou do posto de adido cultural e voltou a morar no Rio de Janeiro. A indignação com a situação política do país apareceu nos trabalhos literários. À luz do desprezo às torturas aplicadas pelos militares e ao Ato Inconstitucional nº 1, escreveu aquele se tornaria o poema mais famoso, Os estatutos do homem.
A escrita firme em oposição à ditadura prosseguiu nos trabalhos A canção de amor armado, de 1966, e Faz escuro mas eu canto, de 1968. A afronta nas obras foi o suficiente para que Mello fosse perseguido pelo governo militar. A saída foi exilar-se na conhecida capital chilena, Santiago. O poeta passou 10 anos na cidade e deu sequência à produção literária. Em 1975, editou o livro Poesia comprometida com a minha e a tua vida, que rendeu o prêmio de Poesia da Associação Paulista de Críticos de Arte. O engajamento do autor na luta por direitos humanos o tornou internacionalmente conhecido. Ainda exilado, peregrinou pela Europa e morou em países como Portugal, Alemanha e França.
Em 2006, à ocasião dos 80 anos do autor, a editora Karmim lançou o cd comemorativo A criação do mundo, com poemas selecionados e declamados pelo próprio poeta, acompanhado por arranjos musicais feitos pelo irmão mais novo, Gaudêncio. Thiago de Mello é membro da Academia Amazonense de Letras e recebeu o destaque de Personalidade Literária do Prêmio Jabuti em 2018, pelo conjunto da obra.
Repercussão
Wilson Lima, governador do Amazonas, decretou luto de três dias pela morte do autor. "É uma perda irreparável para nossa cultura. Que Deus conforte familiares e amigos do nosso grande poeta", afirmou o governador.
O presidente de Cuba, Miguel Díaz-Canel Bermúdez também se manifestou. "Nossa sentida homenagem na partida de Thiago de Mello, com a eterna esperança de que se faça realidade, em breve, seus Estatutos do homem", escreveu o chefe do executivo cubano em uma rede social.
O teólogo Leonardo Boff, a associação folclórica amazonense Boi Garantido e o escritor Marcelo Moutinho foram alguns dos quais compartilharam trechos da obra do autor nas redes sociais.
Daniel Mundukuru, escritor indígena, postou: "O lorde Thiago de Mello nos deixou… Deixou? Não. Deixou saudades. Deixou poesia. Deixou sonhos. Deixou esperanças. Deixou a lembrança de que 'faz escuro, mas eu canto'."
O poeta gaúcho Fabrício Carpinejar afirma: "Não se morre mais depois de ler um poema de Thiago de Mello".
Thiago de Mello foi homenageado na 34ª Bienal de São Paulo, que usou o verso "faz escuro mas eu canto" como tema. O poeta também foi um dos convidados da 1ª Bienal Brasília do Livro e da Leitura, em 2012.
*Estagiário sob a supervisão de Severino Francisco.
Os estatutos do homem
Artigo I
Fica decretado que agora vale a verdade.
agora vale a vida,
e de mãos dadas,
marcharemos todos pela vida verdadeira.
Artigo II
Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.
Artigo III
Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.
Artigo IV
Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.
Parágrafo único:
O homem, confiará no homem
como um menino confia em outro menino.
Artigo V
Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.
Artigo VI
Fica estabelecida, durante dez séculos,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.
Artigo VII
Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.
Artigo VIII
Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama
e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor.
Artigo IX
Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha
sempre o quente sabor da ternura.
Artigo X
Fica permitido a qualquer pessoa,
qualquer hora da vida,
uso do traje branco.
Artigo XI
Fica decretado, por definição,
que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo,
muito mais belo que a estrela da manhã.
Artigo XII
Decreta-se que nada será obrigado
nem proibido,
tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.
Parágrafo único:
Só uma coisa fica proibida:
amar sem amor.
Artigo XIII
Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.
Artigo Final.
Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.