O ator Gabriel Leone sempre viu nas artes a formação de identidade cultural e, por extensão, um fator transformador da sociedade. Foi no auge da pandemia, porém, que, entre momentos bem instáveis, com muito tempo e de mãos atadas para o trabalho, que ele estendeu a percepção: "A música segurou muito minha onda: sou músico, e eu estudo e pesquiso música, há muito tempo. Até mesmo o fato de eu compôr segurou as pontas", conta, ao Correio. Igualmente, por meio da música, o destacado ator da novela Um lugar ao sol vai conquistar um mundo de admiradores: entre cinéfilos, ele deixará a marca no papel-título de Eduardo & Mônica, dirigido pelo brasiliense René Sampaio. O filme estreia na próxima quinta.
Fosse pelas histórias do avô, que serviu à Marinha na capital, ou pelas visitas a uma tia-avó, moradora de Brasília, um elo sempre existiu. Ator de Alemão 2, de José Eduardo Belmonte, Leone aderiu à verve criativa candanga. uma vez que, com o brasiliense Belmonte, ainda esteve na série Carcereiros. "Durante muito tempo (na vida), eu não tinha o olhar político em cima de Brasília", comenta o carioca que, progressivamente, mudou de atitude. Foi no mesmo Cine Brasília, que terá sessões de Eduardo & Mônica, que Leone se viu tietado, pela exibição de Piedade, no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro de 2018.
Com direito a faixas nas trilhas sonoras de algumas obras que integrou, Leone já viveu ícones como Roberto Carlos e Cazuza. Os dotes musicais serviram ainda como instrumento profissional nas peças Aladin, Gota D'água e Os miseráveis. "Formei banda com amigos, estudei canto, sendo autodidata, ao violão e piano. Aliás, o meu nome é Gabriel por causa de uma música do Beto Guedes. A regada relação familiar com a música vem desde o berço", brinca. Numa das cenas mais divertidas de Eduardo & Mônica, por sinal, Leone — a fim de chamar a atenção da personagem de Alice Braga — entoa o sucesso da galesa Bonnie Tyler Total eclipse of the heart. Arrasador.
Entrevista // Gabriel Leone
Como incorporou Eduardo na tela?
A caracterização foi fundamental para mim: eu vinha de Onde nascem os fortes, série que tinha história passada no sertão, e meu personagem pediu um preparo físico com outra realidade. Um mês depois, eu estava na Brasília dos anos 1980, fazendo um menino de 16 anos. O cabelo que eu uso no filme é mega hair. E tinha o uso do aparelho nos dentes. Colocamos espinhas na cara. Usamos fotos minha com 16 anos para chegar à ideia do Eduardo. Com o filme, tive flashes de mim mais novo.
Que olhar tem sobre Brasília?
Durante muito tempo, eu não tinha o olhar político em cima de Brasília. Veio a interação das coisas e a consciência política. O político é tão presente no nosso dia a dia que é difícil dissociar. Acho bonito o René, sendo de Brasília, ter escolhido fazer o filme aqui, com o intuito de mudar a visão de que a cidade só se resume à política. Quantas músicas da MPB não citam o céu de Brasília?! É uma cidade muito interessante de ser filmada, tem uma luz muito interessante. Filmamos na Chapada dos Veadeiros que também é linda! Além de tudo, Brasília é o cenário da vida deles e da obra da Legião Urbana. Brasília é uma personagem muito recorrente na vida da Legião. Esse mergulho na cidade foi muito importante.
No que é formada a saudade no verão do Gabriel?
Da Alice Braga. Foi um processo de muita generosidade, de muita entrega, de muita parceria. Nisso, me bate muita saudade. A música é bem centrada na relação dos dois. Em cena e fora de cena, tivemos um convívio diário intenso — criamos arte, juntos, sinto muitas saudades; até porque ela mora nos Estados Unidos.
Você crê ter voz ativa, junto ao público?
Sou muito discreto. Atores experientes me deram toques importantes, desde muito cedo, de como lidar com a exposição natural que vem do trabalho. Objetos de arte trazem milhões de interpretações possíveis e reações diferentes. Acho importante deixar sempre minha vida pessoal para mim. Ela diz respeito a mim e às pessoas que fazem parte dela: minha namorada, minha família e etc. Quanto a nossa voz como fator de transformação, o trabalho em si traz esse componente. Nisso há a carga política, absurda. Figuras públicas às vezes, com as redes sociais, atingem pessoas com reflexão e diálogo, tudo distanciado do teor de justiçamento e de tribunal presente nas redes, e com os quais não compactuo.
De onde buscou a inocência e a pureza para o Eduardo?
Quando eu filmei, estava com 25 anos. O personagem tem 16 anos. Além do desafio, a composição trouxe dos momentos mais divertidos da minha vida. Foi uma investigação de trazer à tona no meu corpo as minhas memórias de energia. Tivemos tempo de preparação até mesmo em Brasília. A bicicleta do personagem ficou comigo, então eu ficava circulando com ela. Vivi um pouco da experiência do jovem dos anos 80 (o filme se passa em 1986): sem internet ou celular. O contraponto com a Alice (Braga) foi muito fundamental para mim. Construímos lados aparentemente opostos, mas, na verdade, complementares.
No filme, você solta a voz com um sucesso internacional divertido (risos). Como foi isso e qual a tua relação com as músicas da Legião?
Sou muito fã da Legião, como dizem, sou legionário. Sou fanático: é minha banda de rock nacional favorita. Meu pai tem a coleção de discos completa. O Renato, por meio das letras das músicas, sempre foi o cara que mais me emocionou. Bonnie Tyler ajuda a reconstruir estes anos de 1980: há pontos de referência, pistas que são dadas sobre o Eduardo e a Mônica. Por mais tempo que a música tenha, dá apenas para se pincelar algumas características.
E o filme, muda muito?
Com o longa, as coisas tiveram que ser aprofundadas. O "gostar de novelas (do Eduardo)" aparece quando se colocam trilhas sonoras de novelas da época. Obviamente, ele gostava muito de ouvir rádio também. Aquele clipe extravagante da Bonnie Tyler é um ícone neste universo. Amo a Bonnie Tyler e essa música. Foi bom ter me arriscado no imbromation — com os fonemas cantados do jeito que se ouve (risos).
Um filme solar, que chega em meio à pandemia... Como é isso?
A pandemia frustrou expectativas de lançamento criadas. Eduardo & Mônica é dos quais eu me orgulho muito de ter feito. Em meio a momentos muito tristes e difíceis, o filme é solar e já existe no imaginário das pessoas. Para além de compreender a essência da música, é um bom filme. As pessoas vão se divertir e se entreter. O filme tem lados muito bonitos, românticos.
Como experimentou a convivência entre arte e pandemia?
Mais do que nunca ficou clara a importância da cultura e da arte para a gente. A possibilidade de alguém ficar instável emocionalmente, psicologicamente e financeiramente, ao longo da pandemia, é gigantesca. O vírus é um vírus democrático, e que pega todo mundo. A arte ao longo do tempo sempre esteve presente: fosse com músicas, livros, filmes, para acompanhar a gente e fazer a gente refletir e espairecer. É muito triste testemunhar que, no meio disso tudo, exista um governo que bate tanto na cultura, na arte e nos artistas. Um governo que luta contra, e que destruiu o Ministério da Cultura como uma das primeiras medidas.
Quais teus futuros projetos?
Estou num momento muito bacana. Nos últimos três anos, teve trabalhos feitos e que não foram lançados. Em 2022, terei três filmes que foram vistos no último Festival do Rio. Meu álbum de amores, do Rafael Gomes, com músicas do Odair José e Arnaldo Antunes, e eu canto estas músicas(!), e o Alemão 2, do José Eduardo Belmonte. Cidade ilhada, do Sérgio Machado, baseado em texto do Milton Hatoum e Duetto, do Vicente Amorim, coprodução com a Itália. Filme enquanto não estreia, não existe. Meus amigos, enquanto não viram, achavam que estes filmes eram todos lendas (risos). Além de estar no ar com a novela das nove, há a segunda temporada do Dom, que já tem previsão de lançamento para o ano. Pedro Machado Lomba Neto, do Dom, era um carioca que assaltava locais de luxo. Era dependente químico e a história dele é trágica, ele morreu muito cedo.