"Senhor dos raios e trovões e fonte de inspiração para os seus guerreiros". Poderia ser o deus nórdico Thor ou o grego Zeus, entretanto essa descrição é de Xangô, entidade afro-brasileira oriunda de ancestrais divinizados trazidos pelos povos africanos escravizados no Brasil e incorporados a manifestações religiosas de matriz africana. A similaridade entre o panteão afro-brasileiro e outras divindades míticas e religiosas é extensa e pouco conhecida, mas artistas nacionais têm lançado obras que jogam luz ao rico acervo nacional e revelam o potencial artístico para assimilação na cultura pop.
O roteirista Alex Mir, 46 anos, é um dos nomes que enveredou pelo acervo local da cosmogonia africana e está com uma nova edição da história em quadrinhos Orixás, Os Nove Eguns, pela editora Peirópolis. Com desenhos de Alex Rodrigues, Mir apresenta Xangô como uma divindade em conflito e atormentado entre a glória e a guerra, um argumento ético que cai bem para os deuses antropomórficos.
O roteirista dá às entidades e seres encantados deste lado da América do Sul o mesmo tratamento que as outras divindades pop ganham na cultura de massa. "É muito legal trabalhar com esse tema, porque as pessoas começam a perceber que Xangô é tão poderoso, forte e carismático quanto Thor. Os orixás podem ser tão heróis como qualquer outra divindade", defende.
Apaixonado por quadrinhos desde a infância, antes dos 18 anos criou um universo de heróis legitimamente brasileiros: Os defensores da pátria. Embora o nome soe jocoso para o atual contexto político, o argumento era oportuno, um grupo de jovens notáveis com habilidades extraordinárias personificando os melhores atributos e desafios das unidades federativas do Brasil. Essa foi a primeira incursão de Mir na busca por elementos tipicamente nacionais. "Em 2007, consegui publicar, de forma autônoma. Como cada herói representava um estado brasileiro, o da Bahia era um orixá, escolhi Ogun. Toda a narrativa tinha inspiração em quadrinhos norte-americanos. Depois dessa publicação, ficou a ideia e comecei a procurar material sobre orixás e divindades da religiosidade brasileira", explica.
Em 2008, Alex entrou em contato com quadrinistas amigos e apresentou o roteiro de A separação do céu e da terra, a partir da mitologia africana. "Mandei um e-mail para o editor da revista e a partir daí fizemos mais dois trabalhos. Em 2009, entrei num projeto de financiamento cultural em São Paulo e inscrevemos um projeto sobre os orixás. O trabalho contava toda cosmogonia africana, desde a criação dos deuses até a criação da terra", diz. A partir daí, Alex fixou um dos seus principais nichos de trabalho.
A obra foi distribuída em todo o território nacional, em escolas estaduais, e, ao participar de uma edição da Comic Com, recebeu o retorno de professores, religiosos e leitores, que simplesmente se sentiram fisgados por esse outro universo do fantástico. "Percebi que havia muita procura, então, trabalhei em novas edições".
Em 2011, ele publicou Orixás do orum aiê; em 2015, foi a vez de Orixás o dia do silêncio. Dois anos depois veio um dos trabalhos de maior reconhecimento do escritor, o Orixás em guerra, um compilado de histórias de guerras enfrentadas pelas divindades, que rendeu, em 2018, o Troféu HQMix. Prêmio repetido em 2019, dessa vez de Orixás Renascimento, publicado em 2018 com histórias de Iroco e Oxum.
Em 2019, foi a vez de Orixás Ikú, em que narrava a história da Morte, que se apaixona. O trabalho conquistou o Ângelo Agostinho, um importante reconhecimento no segmento de quadrinhos. Em 2020, veio Orixás Os Nove Eguns, que só foi lançado em 2021, mesmo ano em que desenvolveu Orixás A revolta dos Eguns, a ser lançado este ano.
"Eu tenho visto esse tipo de abordagem crescer. Pessoas como André Diniz, que trabalha muito com a africanidade e outros autores estão trazendo essa abordagem e, nos quadrinhos, o tema pode crescer muito", analisa. Apesar das boas perspectivas ele reconhece que o preconceito é um entrave. "Felizmente, estamos vendo a coisa acontecer e as pessoas vendo e lendo a história dos orixás, independentemente de credos, de consumir como cultura, transmídia. Aos poucos, começam a perceber que não é o bicho de sete cabeças e que é muito interessante, como a mitologia nórdica e a japonesa. A africana sempre veio correndo por fora, mas as coisas estão mudando", acredita.
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