Maria Gadú gravou quatro discos de músicas autorais, dividiu um outro com Caetano Veloso, que reúne composições do tropicalista; e, em shows, sempre foi acompanhada por banda. Agora, ao lançar um álbum no qual reverencia a MPB, deixa aflorar ainda mais o talento como intérprete e revela a faceta de multi-instrumentista — tocando sozinha em todas as faixas. Para a compositora paulista, que surgiu no começo da década passada, causando estardalhaço, a solidão era necessária no processo de criação desse trabalho enigmaticamente intitulado Quem sabe isso quer dizer amor.
"Nesse projeto, homenageio em novas falanges da musicalidade, artistas que acompanham minha alma há muitos anos. Arrisquei-me a exercitar instrumentos que nunca havia tocado antes, em canções que me provocam e embalam meu coração. Dedico este disco aos meus alicerces Marisa Monte e Milton Nascimento", enfatiza Gadú. Em 2019, a cantora se permitiu um tempo de introspecção e passou a se dedicar à produção do LP, no qual além de recriar temas consagrados da música popular brasileira fez releitura de três canções internacionais, em inglês, espanhol e italiano.
O projeto é abrangente pois contempla também versões audiovisuais — vídeo-clipes — das 12 faixas do disco, já disponíveis no YouTube; e um documentário de média metragem, com o registro dos bastidores da produção do álbum, que traz capítulos marcantes da vida da cantora e compositora desde o início da carreira, quando ainda se apresentava em casas noturnas de São Paulo, que tem lançamento previsto para 28 de janeiro de 2022.
Para formar o repertório, Maria Gadú selecionou clássicos do cancioneiro nacional, de estilos diversos, como O sal da terra (Beto Guedes e Ronaldo Bastos), Coisas da vida (Rita Lee), Admirável gado novo (Zé Ramalho), Lindo lago do amor (Gonzaguinha) e Faroeste caboclo (Renato Russo). A elas se juntaram outras belas canções, embora menos conhecidas, da obra de Caetano Veloso (Este amor), de Paulinho Moska (Um móbileno furacão), Marisa Monte e Lucas Santana (Abololô), Lô e Márcio Borges (Quem sabe isso quer dizer amor). Complementam o set list as internacionais A me ricordi il mare (Daniele Silvestri e Vicenzo Leuzzi)), El tiempo está después (Fernando Cabrera) e Flying without wings (Wayne Hector e Steve Mac).
Lançamento do selo Slap/ Som Livre, o álbum foi produzido pela cantora e co-produzido por Big Rabello e Felipe Rosano; gravado no estúdio Da Pá Virada, em São Paulo, entre junho e 2019 e setembro último; e masterizado por Carlos Freitas no Studio Clawssic Master, nos Estados Unidos. A capa é uma criação coletiva de Maria Gadú, Rebeca Brack e Lua Leça.
Quem sabe isso quer dizer amor
Álbum de Maria Gadú com 12 faixas. Lançamento do selo Slap/ Som Livre, disponível nas plataformas digitais.
Maria, em seus discos anteriores — o que gravou com Caetano Veloso à parte — prevaleceram composições autorais. O que a levou a gravar Quem sabe isso quer dizer amor com
canções de outros autores?
É um disco de comemoração dos 23 anos que trabalho com música. Por muitos anos exercia a profissão cantando em bares, ruas, restaurantes e a minha musicalidade foi construída pelo repertório de muitos artistas. Resolvi fazer uma reverência, elencando algumas das milhares de canções que amo, as que mais me encaixavam no momento da feitura do disco.
Que critério utilizou para escolher as músicas do repertório?
São canções que estavam no meu dia a dia no período da feitura do disco. Que, em meu ponto de vista, traziam um pouco da minha visão de mundo e de poesia. Difícil demais escolher apenas 12 canções quando se ama música. Foi emocional.
Você deixa claro o carinho que tem por Milton Nascimento e Marisa Monte. Quanto aos outros compositores, qual é a sua relação com a obra deles?
Marisa construiu comigo o amor pela música, me ensinou a cantar na solidão do meu quarto. Milton é uma entidade que tenho o privilégio de construir uma amizade muito bonita. Todas as autoras e autores têm um espaço grande na minha vida, cada qual com sua subjetividade, sua forma de fazer arte. São de tempos e escolhas diversas, e eu amo que arte pode nos proporcionar isso.
Por que decidiu incluir a quilométrica Faroeste caboclo, de Renato Russo, no disco?
Música linda, atemporal, que amo. Das primeiras canções de Renato que aprendi, me toca muito. As histórias brasileiras têm muitos quilômetros e agradeço ao Renato por musicar uma delas de forma integral. Sempre gravo Renato. Sou muito fã.
Quando aflorou a faceta de instrumentista, que explora neste projeto?
Sempre fui instrumentista. Em todos os meus discos e apresentações toco meus instrumentos. Acho que o machismo dentro de tudo coloca sempre a mulher num lugar delicadíssimo: "olha, ela está tocando vários instrumentos". Tantas pessoas fazem isso.
Quanto tempo levou para gravar o álbum, os clipes e o documentário?
O álbum foi gravado em 2019. Depois, ficou parado, como quase tudo, durante a crise da pandemia. Esse ano retomamos as finalizações: mixagem, projeto gráfico. O documentário foi registrado ao longo das gravações.
No processo de produção desse combo, a dificuldade maior foi em relação a qual das partes?
Escolher as canções e lidar com tudo o que aconteceu. Perdi pessoas muito queridas no processo. Minha melhor amiga, Preta Ferreira, foi presa injustamente, o país caminhando para um buraco sem fundo. Tinha medo de imprimir exacerbada tristeza no álbum, por ser genuíno.
Lançar esse trabalho no momento em que a arte e a cultura vem sendo tratada com descaso por órgãos governamentais dessa área, seria um ato de resistência?
Fazer arte é um ato de resistência o tempo todo. Pensar, estudar. Estamos na rua em diversos formatos. Aprendo muito sendo ativista socioambiental. Os indígenas ensinam que resistir vai muito além da palavra. É ato.
Pretende botar o pé na estrada com show para lançar o CD?
Sim, com cautela preciosa. Sinto saudade do palco, da comunhão dos shows. Pra mim, fazer show sempre foi estar reunida com pessoas que gostam de música, o público, a equipe, quem está dentro e fora do palco, no fundo e no raso, todo mundo foi ali ouvir música.