Entre Portugal, Brasil e Cabo Verde, o documentário Saudade do futuro, que será exibido no Festival de Brasília do Cinema hoje, busca traços da cultura da saudade flagrados em momentos históricos cruciais, como a colonização portuguesa, o fascismo, a escravidão, as ditaduras e a violência do Estado. A obra é a estreia de Anna Azevedo como diretora solo de longa-metragem e opta pelo formato de conversas registradas entre os personagens (não há entrevistas formais, para a câmera). No Festival de Brasília de 2016, Anna recebeu os prêmios de Melhor Direção (júri oficial), Melhor Filme (prêmio do público) e Prêmio Canal Brasil pelo curta O homem-livro.
"O tema está comigo há muitos anos. O registro do roteiro na Biblioteca Nacional tem mais de 10 anos! Só que, ao longo da pesquisa para o filme, eu fui descobrindo outras facetas da cultura da saudade, uma espécie de instrumentalização de um sentimento coletivo para controle da massa", detalha a cineasta sobre o Saudade do futuro.
O filme traz relatos de personagens oriundos dos três países lusófonos separados pelo mar, uma presença constante no longa, unindo todas as histórias. A jornada se inicia em Portugal, de onde saíam grandes contingentes de homens para o ciclo da pesca do bacalhau, quando os trabalhadores ficavam cerca de seis meses embarcados na costa gelada do Atlântico Norte, sem pisar em terra. A atividade era o sustentáculo econômico dos 20 anos de guerra colonial na África, que resultaram na queda do Estado Novo português (1933 a 1974) e na independência de suas ex-colônias no continente.
"O Estado fazia encobrir as saudades com a intenção de a gente esquecer de casa. Havia qualquer jogo no ar que nos fazia esquecer. Havia música. Música e bagaços (álcool)", recorda o pescador bacalhoeiro Guilherme Piló. Em Caxinas, localizado nos arredores de Porto (Portugal), mulheres cultivam a tradição do traje preto como forma de viver o luto pelos maridos que morreram durante a pesca do bacalhau. A impossibilidade de velar o corpo físico traz outras nuances para o processo de superação das perdas, sofrimento semelhante ao que os familiares dos desaparecidos políticos durante a ditadura militar no Brasil são acometidos.
"Na ditadura, até sentir saudade era perigoso", relata Victoria Grabois, que perdeu o pai, o marido e o irmão na Guerrilha do Araguaia, desaparecidos. A ativista do grupo Tortura Nunca Mais troca impressões sobre a saudade gerada pela ação do tripé violência-política-polícia com a advogada Marinete Silva, mãe da vereadora Marielle Franco, assassinada em março de 2018, no Rio de Janeiro, e Dalva Correa, cujo filho Thiago foi assassinado pela Polícia Militar em 2003, no Morro do Borel, também no Rio.
Entre os personagens brasileiros, também tem o Martinho da Vila, que lembra da saudade dos africanos arrancados dos seus territórios originários para serem escravizados no lado de cá do Atlântico. No Brasil atual, Anna Azevedo joga luz no sentimento que dá título ao documentário. "No Brasil que volta ao mapa da miséria, a saudade que grita é a do futuro de paz e prosperidade que nos escapou. Mas não se trata de um filme desesperançoso. 'O que a juventude conquistou, foi conquistado, não tem volta', diz uma personagem", lembra a diretora. Indígenas guarani também dão suas impressões sobre o tema. "Quanto à cultura indígena, é outra forma de lidar com a vida, outra cultura. O senhor Ramon, da nação Guarani, está nos falando de um sentimento de ausência, de falta, e que se aproxima do que chamamos de saudade no português".
O documentário tem sua última parada em Cabo Verde, onde o tema saudade é atravessado pela questão de gênero. "Durante muito tempo, a mulher ficou refém desse cais. Hoje, já não é mais a mulher que fica à espera. Muitas vezes, ela é a mulher que vai", lembra a escritora Vera Duarte. Na Comunidade dos Rabelados de Espinho Branco, mantém-se a tradição do batuko, um ritmo ancestral tocado por mulheres e proibido durante o período colonial, acusado de ser sensual.
O vírus tem cura?
Encerrando as exibições do Festival de Brasília do Cinema, o média-metragem Abdzé wede'õ vai mostrar a situação do povo Xavante, de Mato Grosso, durante o período de pandemia e denunciar a ação de ONG's que angariaram verbas em prol da saúde indígena, ajuda que nunca chegou às comunidades. Gravado entre março e setembro de 2020, a obra é comandada por Divino Xavante. "O filme foi uma decisão do povo Xavante. Viajei por várias comunidades, retratando a situação delas, bem como o luto pela morte de vários anciões, detentores de saberes tradicionais importantes da nossa cultura", detalha o cineasta.
Abdzé wede'õ é uma indagação que significa "o vírus tem cura?" em xavante. "Foi uma pergunta feita constantemente durante esse período nas comunidades, até de forma desesperada", relata o diretor, que desenvolve o trabalho de registro da cultura e da luta da nação indígena há 30 anos. Divino conta que os esforços feitos durante a produção do média que será exibido no festival não acabaram. "Estou planejando produzir um longa próximo ano, que vai tratar sobre saúde indígena e o luto por aqueles que perdemos para a covid-19".
*Estagiário sob a supervisão de Severino Francisco