Uma ação entre amigos, a fim de realizar um longa-metragem em padrão experimental, aos moldes de quando jovens se juntavam para fazer filmes super-8. É neste espírito que o diretor Luis Jungmann Girafa comemora a vitória da obra “que acabou dando certo” batizada Acaso: de orçamento módico, o filme foi selecionado para dupla competição no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro — está na Mostra Competitiva Oficial e ainda figura na Mostra Brasília. “Hoje em dia não se faz mais isso. Como estudantes, fazíamos assim: um contando com o outro para poder viabilizar um filme. Foi um pouco uma volta ao passado”, analisa o diretor, muito reconhecido como arquiteto, artista plástico e fotógrafo. Acaso terá exibição pelo canal Brasil (hoje, às 23h30) e ficará, em seguida, disponível na plataforma Innsaiei.TV (ao longo de 22 horas).
Artistas profissionais de Brasília se misturaram a amadores, em Acaso, que prega criatividade e liberdade, e foi filmado em dez dias. Personagens criados por atores como Bidô Galvão, Jorge Du Pan, Hugo Rodas e Celso Araújo estampam a tela, no filme que incorpora um texto de Maria Lúcia Verdi, também atriz da obra. “O longa, que se chamaria Enigma (a princípio) foi se planejando, se construindo. As intenções foram chegando. Não escrevi uma palavra (de roteiro). Aceitei toda a contribuição que veio: foi uma bela experiência. Não é um filme de entendimento fechado — cada espectador pode fazer suas relações”, pontua Girafa.
O diretor, um mineiro que chegou ao DF em 1960, acompanha o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, desde o começo. Além de realizar curtas-metragens, Girafa criou vinhetas para o longa Brasília, a última utopia e concebeu cenário de filmes de Pedro Anísio, João Batista de Andrade e André Luiz Oliveira. À época de estudante na UnB, Girafa participou de projetos de adaptação de música de Vicente Celestino e ainda de um desenho animado.
“Sou um coroa que fica triste da vida quando me colocam em grupo de WhatsApp, por exemplo. Lá não se tem prazer nenhum: só percebo confusão”, brinca o cineasta, ao tempo em que explica situações do coletivo longa Acaso, feito “pela soma de diversas histórias”. Assim, na tela, se vê o personagem de Andrade Júnior (morto em 2019), chamado Deus, em conflito; o de João Antônio, desnorteado ou o de Walter Colton celebrar feitos com cantorias. Comparecem ainda em cena Clara Luz, Luciano Porto e Carmem Moretzsohn. Outros a darem caldo para o enredo são Renato Matos, naturalmente agitado, e Gaivota Naves, à frente de uma persona descrente em utopias.
E Brasília?
“Embora eu goste e tenha uma relação com Brasília muito forte — passei minha vida aqui, com exceção de duas temporadas em que morei fora —, prefiro uma história, lidando com personagens, do que me pautar por locais”, sublinha o diretor. Assim, Acaso nunca pretendeu retratar a W3, ainda que se passe todo no ambiente. “A fotografia não mostra o famoso céu de Brasília, em momento algum. A história poderia se passar em qualquer cidade. Não teve pegada de ser documentário de nada. A avenida retratada poderia ser a de qualquer parte do mundo”, comenta Girafa. Tido como cenário único, “as paredes da W3 acabaram ganhando um protagonismo, como se fosse um novo personagem”, na definição do artista.
Antes de filmar, atores e o diretor passearam pela W3, combinando as ações possíveis para as personagens. “A gente começou o filme, sem roteiro. Sabia-se apenas que se tratava da história de um grupo de pessoas num único dia em que, ao final, algumas delas morreriam”, explica Girafa. O roteiro foi ser definindo a partir do que a equipe havia produzido, sobretudo na ilha de edição. “Não é um filme realista: tem uma certa licença poética, para se tratar mais metaforicamente do que objetivamente alguns temas”, observa o diretor.
Filmado há quatro anos, Acaso consumiu R$ 6 mil na captação; R$ 3 mil para pagamento de um técnico de som; R$ 8 mil, na montagem; R$ 4 mil, na equalização do som e R$ 1 mil foram reservados para a criação de um efeito. Tudo foi pago pelo diretor e, outros R$ 3 mil (reservados à alimentação) saíram do bolso de Ana Cristina Campos, produtora que estreou na função de diretora de fotografia.
“Não tínhamos continuísta e a diretora de arte Valéria Pena-Costa atuou no longa. O filme foi feito de pequenos desafios. Houve uma sintonia muito forte com pessoas com quem trabalhei em longas de terceiros — mas só pessoas com quem tenho um bom trato”, explica o cineasta. Nos bastidores, a maquiagem era apresentada pelo ator, se ele quisesse, não havia luz específica para as cenas.
“Foi uma experiência! Não tinha nada do que no que cinema é obrigado. Não brigamos ou cutucamos nada nem ninguém, e buscamos fazer o filme da maneira mais livre, mais solta e à vontade possível. Acho que esta energia está comportada no filme”, ressalta Girafa. A seleção para o Festival de Brasília rendeu enorme felicidade: “pude retribuir a confiança de todos que trabalharam de graça”, comenta. Um curioso detalhe de bastidor confirma o caráter comunitário do longa. Os atores puderam escolher entre pinturas, desenhos e fotografias criadas por Luis Jungmann Girafa, como remuneração simbólica. “Foi de uma grandiosidade ver a generosidade de todo mundo que se envolveu, com carinho, no filme”, conclui.