Ruy Castro frequenta sebos desde que andava de "calças curtas". No Rio de Janeiro, é conhecido dos proprietários. "Eles sabem do que preciso e me informam do que acabaram de receber", avisa. Mas ele também frequenta plataformas mais contemporâneas, como sites, e adora um leilão de colecionismo. Só assim conseguiu reunir a bibliografia necessária para escrever As vozes da metrópole — Uma antologia do Rio dos anos 20, recém publicado pela Companhia das Letras. Ali, em uma compilação de 454 páginas, Castro reúne frases, textos e versos de autores cujos trabalhos quase se perderam completamente ao longo das últimas décadas. São escritores que faziam o Rio de Janeiro ser conhecido como o pólo criativo e intelectual do Brasil antes dos anos 1920, muitos deles personagens também de Metrópole à beira mar, lançado por Castro em 2019.
Para construir a antologia, o pesquisador foi atrás da produção de nomes como Alvaro Moreyra, Ronald de Carvalho, Agrippino Grieco, Benjamin Costallat, Julia Lopes Almeida, Gilka Machado, Albertina Bertha, Carmem Dolores e muitos outros. Ele aproveitou o isolamento forçado pela pandemia para mergulhar em centenas de leituras de livros acumulados nos últimos anos. "Hoje posso dizer que tenho quase 100% da obra de quase todos eles. É uma estante linda, parece um mini-Real Gabinete Português de Leitura, aqui do Rio", garante. "E, enquanto lia, ia separando, tomando nota ou digitando direto. Deu muito trabalho, sim, mas que prazer! E que sensacional descobrir como eles já escreviam como nós escrevemos hoje, sem os preciosismos do passado e sem aqueles cacoetes artificiais do Mario e do Oswald de Andrade."
Ruy Castro aponta o modernismo e a Semana de Arte Moderna de 1922 como culpados do esquecimento ao qual esses autores foram condenados. "Não creio que tenha sido a história que manteve esses autores silenciados por 100 anos. Foi uma brutal campanha de desmoralização dos autores pré-1922 feita pelos líderes da Semana de Arte Moderna. Eles tinham de passar uma borracha no passado para impor a literatura deles. Você pode ver, por exemplo, que eles quase não falavam do Machado de Assis e do Euclides da Cunha, ignoraram o João do Rio e consideravam o Lima Barreto um "escritor de bairro". Esses eles não conseguiram apagar. Mas muitos dos outros, sim", lamenta o escritor.
Fazer a antologia foi extremamente trabalhoso. Além de textos inteiros, Castro também incluiu frases soltas retiradas das leituras realizadas para a pesquisa. Na abertura, uma sessão de frases, todas com potencial para serem máximas, introduz o leitor num universo sofisticado de humor, letramento e erudição. Em seguida, um conjunto de crônicas e reportagens ajudam a situar o leitor na época e no espaço, com pistas sobre um Rio de Janeiro que avançava em direção à modernidade em velocidade de cruzeiro. Poesia e narrativas de ficção formam o miolo do livro, que se encerra com uma série de "Provocações", com críticas à República, aos modernistas, ao futebol, ao racismo, mas também elogios, como o belo texto de Benjamin Costallat sobre os oito batutas.
Em vários desses escritos, chama a atenção a atualidade. Julia Lopes de Almeida, por exemplo, fala sobre a necessidade de controle sanitário para evitar a epidemia de febre amarela, mas também há textos de seus contemporâneos sobre divórcio, violência contra a mulher, internação psiquiátrica obrigatória, castigos na Marinha e sobre as terríveis condições das prisões brasileiras. "Ou seja, eles tinham grandes preocupações sociais. Era sobre isso que escreviam, sobre o dia a dia daquele tempo. Não estavam interessados só em destruir o soneto e os pronomes bem colocados, não…", avisa Castro.
A maior dificuldade para escrever o livro foi se limitar aos 41 autores citados. "Queria ter incluído muitos mais. Mas um livro precisa ficar dentro de limites razoáveis, não? Não pode ficar grande demais. Mas nada impede que, um dia, ele ganhe uma continuação", diz, lembrando que As vozes da metrópole é um derivado de Metrópole à beira-mar. Abaixo, Ruy Castro conta um pouco sobre a pesquisa para escrever o livro e o que os autores compilados representam na produção literária brasileira das primeiras décadas do século 1920.
Duas perguntas para Ruy Castro
Por que, na sua opinião, muitos desses nomes e de sua produção ficaram esquecidos e desconhecidos?
Porque os modernistas tinham de apagar o Rio para se impor. Veja que praticamente não havia literatura em São Paulo naquele tempo — eles não tinham quem destruir. Mario e Oswald eram completamente desconhecidos em 1922, e os únicos autores paulistas famosos, e mesmo assim só lá, eram o Monteiro Lobato, que só tinha na época o Jeca-Tatu, e o Paulo Setubal, um historiador. O Rio tinha aquela gente toda que você vê no livro. Era preciso apagá-los. Criou-se uma categoria chamada "Pré-Modernismo", a que aqueles autores foram condenados, e tudo que é "pré" perde o prestígio em relação ao que aconteceu depois. Como se o "Pré" fosse uma preparação primitiva para o que viria depois, e que foi o modernismo...
Em Febre amarela, Julia Lopes de Almeida fala da epidemia da doença em um texto que parece perfeitamente atual. Pode contar um pouco como decidiu incluir esse texto? Foi um aceno para o leitor sobre a continuidade de certos comportamentos por parte das autoridades?
Ainda com Julia Lopes e Almeida, no texto sobre a revolta da chibata, há passagens extremamente atuais, como aquela em que fala da população pobre. O que podemos aprender com essas palavras em relação ao presente? Se um texto escrito há 100 anos continua valendo até hoje, é porque o problema talvez não tenha sido resolvido, não? Veja o divórcio, que eles defendiam há 100 anos e só foi se concretizar no Brasil dos anos 1980! Mas nada teria acontecido se eles não tivessem batalhado desde aquela época, escrevendo a respeito.
As vozes da metrópole - Uma antologia do Rio dos anos 20
De Ruy Castro. Companhia das Letras, 454 páginas. R$ 79,90
Notícias pelo celular
Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.
Dê a sua opinião
O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.