"Trabalhamos, na curadoria, a memória para falar do presente e projetar o futuro. O que nos moveu neste festival foi pensar o cinema do futuro e o futuro do cinema", observa a professora da UnB Tânia Montoro, que, ao lado do cineasta Silvio Tendler, ajudou a formatar o conteúdo do 54º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, que, a partir de hoje, será acessível, de modo on-line, até dia 14 de dezembro. "Atualmente, temos a entrada de tantas plataformas de cinema, e boa parte dos festivais, no mundo, ainda têm sido remotos. Também cercamos as questões tocantes a cinema e à televisão, e o casamento entre ambos será o de melhor som?", comenta.
Seis longas-metragens na mostra competitiva, numa seleção que inclui o filme Acaso, do estreante em longas Luis Jungmann Girafa (reconhecido arquiteto, artista plástico e fotógrafo da capital), e dois longas em sessões especiais puxam a programação. Para assistir à competitiva, existem duas opções: às 23h30, há a possibilidade do Canal Brasil — e entre a 1h30 (e ao longo de 22 horas), de modo gratuito, o acesso pode ser na plataforma virtual InnSaei.TV
"As comissões de seleção trouxeram uma pegada plural: todos os gêneros entraram, isso ante a excessiva diversidade nacional dos longas. Um filme sobre Leila Diniz (morta em 1972) abre o festival, que terá, no encerramento, o diretor Divino, um xavante, registrando o impacto da pandemia no Xingu — um olhar dos povos originários sobre o futuro", comenta Silvio Tendler. Olhar pra o futuro, nas palavras do curador, "significa preservar o passado". "O Festival é coalhado de homenagens, e tenho muito orgulho disso", avalia Tendler. Memória viva de conquistas no cinema nacional, a atriz Lea Garcia ganhará um Candango, pelo conjunto da obra. Em caráter retrospectivo, a cineasta Tânia Quaresma será lembrada ao lado de astros também falecidos como Paulo Gustavo, Paulo José e Tarcísio Meira.
Tendler cita ainda a reexibição de clássicos como O país de São Saruê (1971), "filme de Vladimir Carvalho, que é fundamental para a cinematografia nacional, e que (pela censura) resultou na suspensão do Festival", e de um longa, sem completa finalização, sobre Meteorango Kid (1969), de André Luiz Oliveira. Da mostra Memória e Linguagens, o curador pinça Os ossos da saudade, em torno da temática da memória.
Muito conteúdo
"Se tem, no festival, uma safra ainda inédita para o DF e que é muito interessante", avalia Tânia Montoro. Das discussões a serem levantadas, ela adianta tópico que cerca a arquitetura da linguagem do futuro, "em que várias artes se unem, na nova audiovisualidade". Na instância do seminário, com Cinema e Conhecimento, Montoro enfatiza que "se chama a atenção da ciência para inúmeras teses e trabalhos de pós-graduação, onde o filme é mediador e é meio de pesquisa".
Além da exibição de curtas e da Mostra Brasília, entre as exibições paralelas, a Mostra Sessentinha terá vários gêneros de filmes sobre Brasília. Obras etnográficas, poéticas, documentários, comédias e ficções são destacadas. "Há a amplitude do cinema de Brasília. Há o olhar feminino, dos negros, dos operários, das pioneiras, dos indígenas, em torno do Centro Oeste", comenta Montoro. Ela arremata, lembrando que a presença (na tela) do ator Lauro Montana será celebrada.
Duas perguntas // Bartolomeu Rodrigues, secretário de Cultura
Qual a perspectiva de público, no on-line?
Em 2020, tivemos 620 mil espectadores no Canal Brasil e 10 mil circulando nos debates no Canal de YouTube da Secretaria de Cultura e Economia Criativa (Secec). Vencemos o fantasma de realizar o Festival de Brasília tão presencialmente caloroso de forma on-line porque o público é parte integrante. Está no DNA do Festival, é orgânico. As reações acaloradas se transportaram naturalmente para o modo on-line. Discutimos e apontamos em dezembro os riscos da Cinemateca e vimos, infelizmente, o que aconteceu. Falamos sobre o cinema pós-pandemia e estamos diante dessa safra. O público de outra forma esteve conosco e com alta temperatura. Neste ano, não será diferente. Estamos com plataformas ampliadas e mais acessíveis e esperamos um público de 1 milhão de espectadores.
Qual a representatividade e o impulso do cinema brasiliense?
O cinema brasiliense segue presente firme e forte porque a Secretaria de Cultura e Economia Criativa não parou de investir. Estamos agora empenhando R$ 9 milhões para o FAC Visual Periférico, totalmente dedicado ao audiovisual. No edital Multicultural II vamos ofertar a produção de 17 longas. Conte nos dedos quantos estados estão fazendo esse aporte. A Mostra Brasília é naturalmente o abrigo dessa produção, que, de alguma forma, foi represada pela pandemia e impedimento de filmagens. Mas, neste ano, temos produções de Brasília que passaram nos critérios de qualidade para as mostras competitivas de curtas e de longas. Brasília está com um cinema forte e de qualidade. O Brasil e o mundo têm visto essa representatividade nos festivais e premiações. Acabamos de aplaudir o curta-metragem Filhas de lavadeiras, da cineasta Edileuza Penha, ganhar o Grande Prêmio do Cinema Brasileiro. Nunca nosso fomento foi tão longe.
Alice transposta para o Nordeste
A temática universal, emanada por questões políticas e sociais, junto com discussões delicadas, que alcançam a morte, tornaram o primeiro concorrente a ser apresentado no Festival de Brasília, Alice dos Anjos, um filme de "comunicação com toda a família", como demarca o diretor Daniel Leite Almeida. "Tudo é tratado de maneira lúdica e chega pela perspectiva de uma criança", esclarece. Alice no país das maravilhas (obra do século 19, assinada por Lewis Carroll), de modo evidente, serve como molde para as andanças da pequena nordestina Alice, que, sem saber, vai batalhar contra a construção de uma usina hidrelétrica.
Estar no mais duradouro festival nacional de cinema traz expectativa alta para Daniel, "por ser um dos maiores eventos", e ainda pelo resgate de origens: "Sou goiano, então nasci e cresci no Centro-Oeste", conta. O diretor admite que pretendia muito sentir o calor do público, fosse o evento presencial, como "só um Festival como o de Brasília proporciona". Multiplicar as possibilidades do evento, ocasionalmente virtual, tornou meta.
"Nesse momento, gravo um longa documental em cidades do interior da Paraíba. Por onde estamos passando, tenho divulgado o Alice dos Anjos, e as pessoas terão a possibilidade de assisti-lo, mesmo estando tão distante. Toda a equipe do filme e as pessoas da cidade de Vitória da Conquista (Bahia) terão a oportunidade de acompanhar o Festival pela primeira vez. Isso é incrível", celebra Daniel.
Filmado entre julho e agosto de 2019, Alice dos Anjos estampa na tela a região do Sudoeste da Bahia (Vitória da Conquista, distritos de Furquilha, Pradoso, Fazenda Santa Marta e cidade de Anagé) — "Queríamos que o filme tivesse a cara da população local, então, gravamos em comunidades da região mesmo", ressalta o cineasta. Tiffanie Costa, uma atriz mirim, passou por testes, depois de indicada por um tio dela para a produção. Orçado em R$ 849 mil, o longa teve recursos do Fundo Setorial do Audiovisual, a partir de um edital (2016) do extinto MinC, que estimulou uma cota de criação voltada a público infanto-juvenil.
Inicialmente, não haveria teor musical no longa de Daniel Leite Almeida. O compositor da trilha João Omar (filho de Elomar) foi dos que aceitaram o risco de investir nas músicas compostas semanas antes das filmagens. "A ideia surgiu durante o último tratamento do roteiro. As letras são minhas com a melodia de João Omar (que, na última música do filme, assinou letra e melodia)", conta o cineasta.
Existência no cinema
Encarando o cinema como "um lugar existencial", Daniel conta que foi encontrado pela sétima arte em que passou a investir, e lhe permitiu "existir no mundo". Entre conflitos mais terrenos, e aparentes na trama do longa, a luta de classes num interior do coronelismo desponta, dando margem à persistência dos Severinos. "Eles fazem referência à obra do João Cabral de Melo Neto (Morte e vida Severina), que fala sobre o retirante e sobre o nascer, o morrer, algo presente na nossa obra. Só que quando pensei nos Severinos do filme, pensei nos quilombolas. Na vida real, são esses os Severinos", diz o artista.
Referências não faltam ao longa Alice dos Anjos, que bebe de Pedagogia do oprimido (de Paulo Freire), passando por pinturas de Cândido Portinari e Tarsila do Amaral. Junto com A revolução dos bichos (de George Orwell), fábulas da cultura popular brasileira, "com resgate de muito da memória infantil de alguém que vem do interior do Brasil", como pontua Daniel, formatam o longa que encampa inspirações em Gonçalves Dias e Manoel de Barros.
Na concepção visual do longa, a indicação para a diretora de arte Luciana Buarque (que, por exemplo, assinou o figurino de Hoje é dia de Maria) era investir num trabalho artesanal, voltado a uma arte circense. "Luciana teve inspiração nas texturas já produzidas na região (para o vestuário). Optamos, ainda, por não usar máscaras, mesmo nos personagens oníricos que representavam bichos, a fim de valorizar a expressividade nas composições de cada ator", explica Daniel Leite Almeida.
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