Peter Jackson tinha apenas 6 anos em 1968 e, portanto, não tinha ideia de que naquele ano estava acontecendo algo que mais tarde teria um grande impacto em sua carreira como diretor de cinema.
Esse foi o ano em que o autor J.R.R. Tolkien se recusou a dar permissão à banda britânica The Beatles para fazer uma versão cinematográfica de seu romance de fantasia épica The Lord of the Rings (O Senhor dos Anéis).
Return of the King (O Retorno do Rei), o último filme da adaptação de Jackson da trilogia clássica literária, bateria o recorde de mais Oscars em uma cerimônia: 11, incluindo o de melhor diretor.
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Esta história está condada em um documentário novo de quase oito horas, Get Back, que estreou na semana passada na plataforma de streaming Disney+.
Para o projeto, Jackson restaurou mais de 50 horas de tomadas descartadas do documentário Let It Be de 1970 e as reuniu para contar uma versão mais positiva do que aconteceu no estúdio em janeiro de 1969.
Trabalhar com os Beatles também deu a Jackson a oportunidade de perguntar a Paul McCartney sobre o que realmente aconteceu com sua versão de O Senhor dos Anéis.
Dos Beatles à obra de Tolkien
Em uma entrevista à BBC da Nova Zelândia, sua terra natal, Jackson admite que ficou curioso para saber a verdade sobre o assunto.
"Tenho reunido pequenas informações. Tenho questionado o Paul sobre isso. Ringo não se lembra de muita coisa", diz Jackson.
"O que eu entendo é que Denis O'Dell, que produziu The Magic Christian (uma comédia britânica de 1969 estrelada por Peter Sellers e Ringo Starr) teve a ideia de fazer O Senhor dos Anéis."
"Quando eles (os Beatles) foram para Rishikesh e permaneceram na Índia por cerca de três meses com Maharishi no início de 1968, (O'Dell) enviou os livros para eles", conta Jackson.
"Como são três, ele enviou um livro para cada um dos Beatles. Não acho que Ringo tenha recebido um, mas John, Paul e George conseguiram um livro de O Senhor dos Anéis para ler na Índia. Eles ficaram empolgados", acrescenta.
No entanto, a intervenção do autor, que morreu em 1973, três anos após a separação dos Beatles, fez com que o projeto nunca se materializasse, explica Jackson.
"No final, eles não conseguiram os direitos de Tolkien porque ele não gostou da ideia de um grupo pop produzindo a história. Então, foi rejeitado por ele. Eles tentaram fazer o filme. Não há dúvidas. E a certa altura, no início de 1968, eles estavam pensando seriamente em realizar o projeto", diz o cineasta.
Foi sugerido que, se o filme tivesse sido aprovado, teria McCartney como Frodo, Starr como Sam, Lennon como Gollum e Harrison como Gandalf.
Quem os Beatles queriam como diretor? Stanley Kubrick, que tinha acabado de fazer 2001: A Space Odyssey (2001: Uma Odisséia no Espaço).
Jackson não contesta essas sugestões.
"Paul não se lembrava exatamente [desses detalhes] quando falei com ele, mas acho que sim."
Ele também reconhece o quão diferente poderia ter sido sua própria vida se os Beatles tivessem feito O Senhor dos Anéis.
"Paul disse: 'Bem, estou feliz por não ter feito. Porque você fez o seu e eu gostei do seu filme'. Mas eu disse: 'É uma pena que não o fizeram, porque teria sido um musical'", lembrou.
"O que os Beatles teriam feito com uma trilha sonora de Lord of the Rings? Seriam 14 ou 15 canções incríveis dos Beatles", diz ele.
"Então, tenho sentimentos confusos sobre isso. Eu teria adorado ouvir esse álbum e também estou feliz por ter tido a oportunidade de fazer os filmes. Mas essas músicas teriam sido fascinantes", acrescenta.
Peter Jackson e o quarteto de Liverpool
Mais de cinco décadas depois, Jackson teve sua própria chance de fazer parte da história dos Beatles.
No verão de 2017, ele se reuniu com a empresa dos Beatles, a Apple Corps, para discutir uma possível colaboração em uma exposição de realidade virtual.
Obcecado pelos Beatles ("bunca gostei de outra banda além dos Beatles", ele diz), Jackson fez uma pergunta cuja resposta sempre quis saber. O que aconteceu com as tomadas descartadas do documentário Let It Be, de 1970, de Michael Lindsay-Hogg?
A resposta o encantou. "Eles disseram: 'Nós temos tudo'. Eles disseram que estavam pensando em usar o filme para um documentário independente mas não tinham um cineasta."
"Foi a única vez na minha vida que fiz isso. Levantei a mão e disse: 'Se você está procurando por alguém, por favor, pense em mim.''
Ele recebeu a oferta de emprego no final do dia e passou os próximos quatro anos de sua vida trabalhando em Get Back.
Jackson usou técnicas semelhantes às empregadas em seu documentário da Primeira Guerra Mundial They Shall Not Grow Old ("Eles não envelhecerão") para restaurar horas de imagens do Beatles mostrando o quarteto criando algumas de suas canções mais conhecidas do zero.
Jackson está na vanguarda da tecnologia de cinema há mais de duas décadas. No início deste mês, ele vendeu a divisão de efeitos visuais de sua empresa Weta Digital por US$ 1,625 bilhão (cerca de R$ 9,1 bilhões).
Mas há um projeto futurista que ele acredita que nunca vai acontecer. Jackson diz que não há como os Beatles fazerem como o Abba e sair em turnê como avatares digitais.
"Os Beatles têm a trágica complicação de que dois deles não estão vivos. Então você poderia fazer isso e representar George e John de uma forma que eles ficassem felizes. Seria algo difícil. Isso se torna muito mais arriscado. Eu não acho que você verá isso com os Beatles."
No entanto, ele está muito aberto a mais colaborações com a banda inglesa.
"Eu adoraria trabalhar com os Beatles de novo. Me encantaria trabalhar com os Beatles agora. No entanto, não acho que haja qualquer outra coletânea de filmes no cofre que eu possa ter em minhas mãos. Este é o ovo de ouro."
Inspirador ou sem objetivo?
Nem todos os críticos gostaram de Get Back.
Alex Petridis, do diário britânico The Guardian, deu três estrelas de cinco. Ele diz que na "última epopeia de Peter Jackson, os momentos de inspiração e interesse são abandonados em meio a hectares de conversa desconexa ('divagações sem objetivo', como diz Lennon) e repetição "
Já o The Times deu quatro estrelas. Kevin Maher disse que o "flashback épico profundamente comovente mostra esses jovens carismáticos (que ainda não tinham chegado aos 30) em doce e amorosa harmonia".
E o The Telegraph optou pela mesma nota, com Neil McCormick dizendo que "o trabalho meticuloso destilou 200 horas de vídeo e áudio em uma série de três partes frequentemente instigante e exaustiva".
No entanto, The Independent foi mais benevolente e deu-lhe a pontuação mais alta: cinco estrelas. Ed Cumming opinou que a "série de documentários em três partes estabeleceu o padrão para todas as avaliações futuras da banda."
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