CINEMA

Filme 'Deserto particular' pode consagrar o cineasta Aly Muritiba

Selecionado para representar o Brasil no Oscar, 'Deserto particular' marca um ponto de virada na carreira de Aly Muritiba, vencedor de prêmio no Festival de Veneza

No filtro de 10 mil associados da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas para chegar à corrida do Oscar, em 2022, o cineasta Aly Muritiba lança no Brasil, o longa que pode levá-lo à tal consagração: Deserto particular, que vai estrear nos cinemas na quinta-feira. "Há um efeito catártico: me impressiona ver o que as exibições do filme têm provocado de belo", observa o diretor, em entrevista ao Correio.

Sob inspirações exclusivamente brasileiras, Aly rechaça qualquer comparação do filme, que venceu o prêmio de público na mostra Venice Days (no Festival de Veneza), com o estrangeiro Traídos pelo desejo. "Há uma pequena premissa que os assemelha. Mas no meu filme ninguém é traído pelo desejo: as pessoas apenas têm o seu desejo aflorado, despertado e realizado", pontua. Sensualidade é um dos elementos administrados na trama, pelo cineasta que "queria fazer um filme tesudo". "Queria que o espectador sentisse a pele dos personagens: olho para os corpos de maneira apaixonada", diz.

Ainda que tenha ressalvas à atuação da Agência Nacional do Cinema — "há um processo de inação, decorrente de vontade política" —, Aly comenta que tem recebido apoio da entidade na promoção do filme. À frente da série Cangaço Novo (para a Amazon, com o codiretor Fábio Mendonça), em filmagem no sertão paraibano e, na sequência, no Rio Grande do Norte, o diretor prevê a adaptação para longa do romance de Daniel Galera, Barba ensopada de sangue (projeto da RT Features).

Na rebarba de Deserto particular, em breve, Aly Muritiba deverá lançar Jesus Kid, que no Festival de Gramado rendeu prêmios de direção, roteiro e melhor ator coadjuvante (Leandro Daniel). "É uma comédia pop, irônica e ácida, que bebe bastante em irmãos Coen e em Quentin Tarantino — mas também bebe  nas chanchadas brasileiras. Queria fazer uma chanchada brasileira contemporânea que tirasse sarro do contexto político e social em que nos metemos desde 2018. Jesus Kid reflete a consequência dos nossos absurdos", avalia.

Entrevista / Aly Muritiba


Cutucar religião é risco, em cinema?

Não sei. Não cutuco religião no filme. Tem personagens religiosos, que são tratados com respeito. Os personagens religiosos, neopentecostais, são como são as pessoas reais: mais conservadores nos costumes. A avó do protagonista, que é uma mulher crente, faz o que ela faz (no filme), por amor. As pessoas mais conservadoras fazem o que fazem, por acreditar que aquilo seja o melhor para o outro — para si, e para o mundo. Parto desse pressuposto. Trato meus personagens como trato as pessoas, sempre com muito respeito.

O público brasileiro está pronto para assimilar o seu filme?

Muito embora o filme trate de desejo e sexualidade; muito embora seja protagonizada por pessoa não-binária — a personagem Sara não é uma mulher trans, nem um menino trans, é uma pessoa não-binária; uma pessoa de gênero fluido —, o filme tem um tema macro com o qual qualquer pessoa se identifica, e que é o amor. Acho que todo mundo quer viver ou assistir a uma bela história de amor. Todos querem torcer por uma história assim. Nesse sentido, acho que o público brasileiro está prontíssimo. Ainda mais vivendo num período tão difícil, tão conflagrado, tão odioso. Depois de passar dois anos trancafiado dentro de casa, o público está bem pronto para fazer a viagem que Daniel (o personagem) faz. Dois anos sem dançar com ninguém, sem beijar ninguém?! O público está preparadíssimo.

O filme fala de crime e castigo: você se vê aprisionado pela antiga vivência como agente penitenciário?

Meu filme fala de consequências acerca de atos violentos, mas é um tema recorrente em meu cinema, mesmo antes de as pessoas saberem que eu trabalhei na penitenciária. Acho que não tem relação qualquer com meu passado penitenciário. Tem a ver com o fato de que personagens em situações limites tendem a ser personagens mais interessantes. Busco personagens mais profundos, complexos e completos.

Crê que a vigilância de câmeras acompanhe seu esquadro como cineasta?

Há sim o lance das relações virtuais, mediadas por celular, das relações construídas muitas pelas imagens que você faz de si mesmo e que propaga em dispositivos eletrônicos. Isso tem muito menos a ver com meu passado e, sim, mais a ver com o mundo contemporâneo. Tenho feito entrevistas mediadas por videochamadas. As relações estão assim. Isso acaba refletido nos meus filmes e nas ferramentas utilizadas por meus personagens. Tendo a fazer histórias bastante realistas. Isso aparece nos meus filmes.

Quais as peculiaridade do elenco, que traz o Antonio Saboia, de Bacurau, filme premiado em Cannes?

Os protagonistas são pessoas incríveis. Eles têm formações muito distintas. O Antonio Saboia é um ator bastante cerebral e que vem de uma escola inglesa, passou cinco anos na Europa, estudando teatro. Ele é muito dedicado, físico e aplicado destes atores que estudam o dia inteiro. Mesmo sem filmar, ele continuava no personagem. É um cara sensacional. Pedro Fasanaro, por seu turno, é pura emoção, puro sentimento, pura paixão É muito intuitivo e que traz uma leveza muito grande.

Cinema se aprende na faculdade?

Cinema, sim, se aprende na faculdade. Há muitas e muitas gerações que nunca frequentaram os bancos acadêmicos e são incríveis. A história do cinema foi escrita por pessoas que vieram de um monte de áreas congêneres e que não estavam atreladas ao meio acadêmico. O fenômeno das universidades de cinema é muito recente. Eu frequentei a faculdade de cinema, mas não me formei. Ela foi essencial para eu travar contato com cinematografias diferentes por participar de discussões de filmes. Funcionou muito como cineclube. Foi muito importante para eu encontrar minha turma: me revelou com quem viria a trabalhar, futuramente.

Como está nossa imagem, em termos de cinema, no exterior?

O cinema brasileiro tem tido espaço no exterior: temos conquistando o coração e o público em grandes festivais de cinema. Tivemos sucessos muito recentes como Bacurau, como A vida invisível e agora com Deserto particular, que foi premiado em Veneza. Há algum tempinho, com Boi neon, do Gabriel Mascaro, também houve prêmio em Veneza. Tivemos o filme da Bárbara Paz (com o curta Ato, em Veneza). Temos presença bastante sólida reconhecida no exterior.

Existe uma cartilha progressista de temas no longa?

Não diria que no meu filme exista uma cartilha progressista, não. O que meu filme tem é muito afeto. O que meu filme tem, inclusive, é muita vontade de afetar. É um filme que propõe uma existência distinta, em que as pessoas possam se ver, se escutar, se olhar, se encontrar e, eventualmente, se amar. Mesmo falando de temas espinhosos como o conservadorismo no Brasil contemporâneo, homoafetividade e direito de exercer a sexualidade livremente, o filme o faz de maneira leve e respeitosa — propositiva. Em alguma conversa com o Henrique (corroteirista do filme), ele me disse: "Pô mas as coisas não são assim". E eu dizia: "Mas podem ser — e a gente quer que as coisas sejam assim". Então comecemos a fazer que sejam assim, nas nossas fantasias, nos nossos filmes.

Você é um homem naturalmente moderno ou se policia?

Não existe o homem naturalmente moderno nascido numa sociedade machista e patriarcal como a nossa. A gente precisa se esforçar, diuturnamente, minuto a minuto, se policiar para tentar controlar o machismo, o patriarcado que foi introjetado na gente. Sou um sujeito criado do sertão da Bahia, em 1979, e criado numa família de homens. Trago um exercício diário e constante de desconstrução. Faço isso em respeito às mulheres da minha vida: em respeito a minha mãe, a minha filha, em respeito à namorada e à mãe dos meus filhos. E a todas as mulheres que me cercam.

Que diretores te inspiraram, no longa?

Bebi muito da fonte do cinema brasileiro contemporâneo, da retomada. Existe uma homenagem a Sérgio Machado, com uma cena de Cidade Baixa no filme; há homenagem a O céu de Suely (de Karim Aïnouz), quando a atriz Zezita Matos interpreta uma avó (ela foi a avó da protagonista Suely) e existe uma homenagem a Walter Salles, de Central do Brasil: está na construção fílmica da viagem, vista como via de reconstrução de emoções e reconexões.

Aceitação e responsabilidade têm que peso no seu olhar?

Fiz alguns filmes sobre responsabilidade Ferrugem é meu grande filme sobre isso — o quanto as consequências de seus atos devem ser assumidas e vividas. No caso do Deserto particular estou caminhando mais para o sentido da aceitação de emoções. Tanto Para minha amada morta quanto Ferrugem são sobre a afetividade masculina no mundo contemporâneo. No Deserto particular, consegui chegar a um denominador que me agrada muito que é o da conciliação do homem com o sentir, com o afeto, com o outro, mesmo que o outro não seja necessariamente aquilo que ele havia idealizado antes.

Confira vídeo da entrevista no site www.correiobraziliense.com.br