Destaque no último festival de Cannes, o filme francês Benedetta discute temas sobre relacionamentos LGBTQUIA+ no século XVII e religião. Inspirado no livro "Atos Imodestos", de Judith C. Brown, o filme acompanha Benedetta Carlini, interpretada por Virginie Efira, que sofre de um distúrbio e tem perturbações e visões religiosas sobre a Virgem Maria, além de clamar que consegue se comunicar com ela. Além disso, a personagem tem visões eróticas com Jesus Cristo. Tudo muda quando uma nova mulher chega ao convento, Bartolomea, e as duas iniciam um romance.
Pelo começo do filme já dá para ter uma noção do nível de polêmica: uma garota que pretende ser freira é separada de uma imagem de madeira da Virgem Maria, assim que chega ao convento. Alguns minutos depois, a personagem já está crescida, e de novo com o objeto em mãos, decide usar a imagem não para orar, mas como um dildo.
Esta é apenas uma das cenas "controversas" do longa de Paul Verhoeven - conhecido por seus filmes polêmicos. A duas vezes que o cineasta holandês esteve no Festival de Cannes ele causou muita polêmica. A primeira foi em 1992 com o filme Instinto Selvagem, filme que chocou por trazer cenas de sexo e violência explícitas. Há cinco anos atrás, ele novamente causou alvoroço com Elle, onde ele subverteu o assunto estupro. O elogiado filme, deu a Isabelle Huppert uma indicação ao Oscar de Melhor Atriz.
Verhoeven, de 83 anos, no entanto, não queria necessariamente "causar" em Benedetta. Em entrevista ao MSN, ele conta que sua preocupação enquanto gravava era ser fiel à realidade e, para isso, estudou os documentos relacionados ao julgamento de Benedetta Carlini, freira católica condenada por seu lesbianismo, na Itália do século 17, e inspiração para a história. "O que muitos veem como provocação neste filme não é nada além de eu tentando me manter próximo da realidade. E tendo respeito pelo passado - nós não precisamos gostar do que fizemos ao longo da história, mas nós não devemos apagar nada", afirma o diretor.
O diretor afirmou ainda que não usou um coordenador de intimidade no set, apesar de ser comum após os escândalos sexuais revelados em Hollywood recentemente. Esses profissionais garantem que todos estejam à vontade durante a gravação de cenas de sexo. No set, Verhoeven e sua equipe criavam esboços de como as cenas picantes e de nudez deveriam ser e os discutiam com as atrizes. Se elas tinham algum problema, adaptações eram feitas. Elas então coreografavam o enlace e "assumiam a dianteira" na gravação.
O roteiro ainda foi feito a partir do livro de uma mulher e "Benedetta" teve mulheres nos cargos de diretora de fotografia, diretora de arte e diretora-assistente, o que Verhoeven diz ter sido suficiente para impedir um olhar masculino e fetichista nas cenas de amor entre as protagonistas.
Narrativa profunda
No filme, os desejos sexuais de Benedetta e Bartolomea são suprimidos antes mesmo de se conhecerem. A impossibilidade de viverem sua homossexualidade em tempos de fé cristã exacerbada as leva a uma catarse sexual quando enfim estão reunidas.
Mas há uma reviravolta nessa história de condenação do "pecado" porque Benedetta alega ter visões espirituais e sensuais, nas quais recebia mensagens do próprio Jesus Cristo, se tornando assim uma espécie de messias. Em uma cena, sofrendo de dores, ela é marcada com feridas nos pulsos, nos pés e no peito, como as da crucificação.
A freira chega a incorporar o próprio Cristo, assumindo uma voz grave. "Eu tentei me afastar de 'O Exorcista', porque todas as 'outras identidades' de Benedetta são positivas, não demoníacas. E essas possessões também estão documentadas, na vida real teriam ido além, incluindo São Paulo e anjos", disse o diretor do longa.
Verhoeven diz ainda que era importante mostrar a sexualidade na trama, já que ela reflete aquilo que o livro em que a obra foi inspirado descreve. "Os documentos da época mostram que o escrivão realmente escreveu coisas do tipo 'ela beijou minhas genitais mais de 20 vezes' ou 'Benedetta pegou minha mão à força e a pôs sobre ela, se movendo tanto que acabou se corrompendo'", diz o cineasta, sobre os testemunhos de Bartolomea à Igreja Católica.
"Nós não deveríamos ter medo de mostrar algo que quase todo mundo e muitas outras espécies fazem de forma regular. É muito estranho que, nesse período de puritanismo, é normal mostrar violência, assassinatos horríveis, explosões e só o sexo ser questionado" critica o cineasta.
Críticas
Rotulado como "provocateur" por críticos e pela imprensa, o diretor diz que há assuntos que precisam ser enfrentados, que não quer usar seu cinema para abafar a verdade. E isso vale, no novo longa, tanto para a parte religiosa, quanto para a LGBTQIA+. "Nós sabemos muito bem as coisas terríveis que a Igreja Católica fez em seus 2.000 anos - cruzadas, a Inquisição, tortura, assassinatos de 'bruxas', pedofilia", diz ele sobre o primeiro ponto. Já em relação ao segundo, se mostra bastante à vontade mesmo sendo heterossexual e pertencendo a uma geração mais avessa à diversidade.
"A vivência LGBTQIA+ é apenas um reflexo da natureza. Todos os tipos de sexualidade existem no planeta, foi isso o que a evolução construiu. Enquanto artista, é preciso estar ciente disso, e isso precisa refletir no seu trabalho. Não porque queremos promover a diversidade, mas porque essa é a nossa realidade, é algo que nos cerca."
O longa recebeu críticas positivas da crítica especializada. No site do IMDB a nota é de 6,7/10. No Metacrit o filme recebeu nota 69 de 100 e no site Rotten Tomatoes o longa tem 85% de aprovação.