Crítica // Marighella ####
Fim da lacuna
Há profundidade na letra da música Pequena memória para um tempo sem memória, usada no longa Marighella, que parece bem ilustrar o grande ganho para o espectador do filme assinado por Wagner Moura: trazer imagens (e representação) para a lacuna visual no retrato de presos e torturados pela ditadura brasileira. Alternando vitalidade de cenas de ação a embasamento de conceitos (onde pesa a nomenclatura revolução ou golpe), o longa prende pelo lado emocional, ao expôr a relação do guerrilheiro Marighella, interpretado por Seu Jorge, com o filho. Aos brados do "Viva a democracia", o homem que deu rosto à chamada ameaça comunista não protagoniza gestos aventureiros ou gloriosos, trazendo, sim, ações fundamentadas e reforçando a imagem de estrategista.
Numa cena quase inicial, militares marcham reforçando o "esquerda, esquerda" (numa ironia à cadência dos coturnos) que avança na tela, sob o roteiro de Wagner Moura e Felipe Braga. Valores glorificados por Marighella no filme, entre os quais a lealdade, o amor e a honestidade não camuflam a truculência da luta armada. Justiçamento reveste a bandeira do "olho por olho" proclamado em muitos momentos. Mantidos, ainda hoje, na clandestinidade, os atos dos agentes do DOPS têm boa encenação, no embalo da ambiguidade cruel dada por Bruno Gagliasso (que defende o personagem do policial Lúcio).
Espancamentos e espetáculos grotescos de prisões trazem uma contundência parelha ao do clássico Pra frente, Brasil! (1982). No absolutamente atual relato dos fins dos anos 60, em que, como dito no filme, foram caladas "ideias com as quais (o governo) não consegue dialogar", pesam as participações de bons atores como Humberto Carrão (Humberto, no filme), Carla Ribas (Gorette) e Bella Camero (Bella).
Na preparação de elenco, pode ser sentido o dedo de Fátima Toledo (de Pixote — A lei do mais fraco), e a produção ganha com a direção de arte de Frederico Pinto e a trilha sonora inspirada que traz músicas como Banditismo por uma questão de classe, Monólogo ao pé do ouvido e Eu não tenho onde morar.
Potente em mensagens políticas, Marighella ambienta, no desfile de kombis surradas, galpões abandonados e até trens saqueados, a tal "página infeliz da nossa história", tão bem cantada por Chico Buarque. "Vocês estão matando um patriota" é das frases desde já eternizadas (por Jorge Paz), com a chegada do longa aos cinemas.