Mônica Salmaso, uma das maiores intérpretes da MPB, pertence ao naipe que se insere entre a velha guarda e a nova geração de cantoras brasileiras. Seu trabalho, registrado em 12 discos e três DVDs, tem a diversidade e o bom gosto como marcas registradas. Aos 50 anos e 25 de carreira, ela demonstrou familiaridade ao emprestar sua bela voz aos afro-sambas de Baden Powell e Vinicius de Moraes, à canções de Chico Buarque, ao ambiente sonoro de Guinga e Paulo César Pinheiro e à delicadeza do lirismo proposto por diferentes autores.
Com a idealização e gravação do álbum Caipira, lançado em 2017, incorporou ao seu trabalho o universo rural e, de lá, trouxe cantigas que foram criadas e registradas originalmente por J. Cascata (Minha palhoça), Renato Teixeira (Amanheceu, peguei a viola), Xangô da Mangueira (Moro na roça). Incluiu também no repertório composições de Tom Zé (Menina, amanhã de manhã), Chico César (Beradero) e Sérgio Santos (Voz), entre outros.
"Quando fiz esse disco, pensava naquele brasileiro do interior do país, mas que também traz o interior de si mesmo. A relação com a natureza faz parte da vida dessas pessoas de uma forma diversa. Elas possuem um ponto de vista físico amplo, o que amplia também seu próprio universo interior", destaca Mônica. "O espaço de contemplação para fora também reflete para dentro. Queria entrar em contato com isso", acrescenta.
Por conta da pandemia, Mônica precisou interromper a turnê que tinha, igualmente, o nome do disco. Aí surgiu a ideia de levar o conteúdo do projeto — em outro formato —, para as plataformas digitais, sob o título Caipira online. Realização de Ô de Casas Produções Artísticas e dividido em quatro partes, a cantora conta com a participação de convidados. Sexta-feira, na estreia, ela tem ao seu lado o trio Conversa Ribeira, formado por Andrea dos Guimarães (voz), João Paulo Amaral (viola e voz) e Daniel Muller (piano e acordeon). No segundo episódio é a vez do violeiro Paulo Freire; na terceira apresentação quem toma parte é o violonista mineiro Sérgio Santos; enquanto no encerramento há a presença do cantor, compositor, ator e apresentador Rolando Boldrin.
"É uma alegria ter como convidado especial no Caipira Online o grande artista Rolando Boldrin, com toda a vida dedicada à valorização da cultura popular brasileira, mostrando o que temos de mais forte e rico, de mais único e potente em termos de identidade. Para mim, Boldrin é um gigante brasileiro, alguém que merece todas as reverências."
Entrevista / Mônica Salmaso
Aos 50 anos de idade e 25 de carreira, você dedicou metade de sua vida à música. Que avaliação faz desta jornada artística?
Tenho muito orgulho desta minha jornada, feita tijolo a tijolo, do meu jeito de formiga trabalhadora. Gosto de ter formado um público lindo e variado, que chegou ao meu trabalho e ainda chega por identidade, unicamente. Tive sorte de saída ao aceitar (ainda que sabendo da responsabilidade que isso pedia) fazer um primeiro disco em duo com um grande músico, muito mais experiente, muito mais sabedor de música do que eu, o Paulo Bellinati. Mas, a partir deste trabalho, muitas portas se abriram, conheci muita gente incrível, fiz laços, aprendi muito e pude fazer a minha estrada musical.
Você cantou os afro-sambas de Baden Powell e Vinicius de Moraes, no disco de estreia; Chico Buarque em Noites de gala, samba na rua; o lirismo da MPB em Alma lírica; e Paulo César Pinheiro e Guinga, no Corpo de baile. Já em seu álbum mais recente, focaliza o universo caipira. A diversidade deve ser vista como a marca registrada do seu trabalho?
Acho que as marcas registradas do meu trabalho são meu amor à música brasileira, a minha liberdade de criar e de aceitar projetos com os quais me identifico e as parcerias musicais incríveis. Há verdade absoluta nas minhas escolhas e há o compromisso também absoluto que eu tenho comigo de fazer sempre o meu melhor. Mas são as coisas que definem, não só os meus trabalhos como o desenho inteiro da minha carreira até aqui.
Foi sua origem interiorana que a levou a gravar o álbum Caipira?
Na realidade minha origem é urbaníssima. Nasci na cidade de São Paulo, mas tudo que diz respeito ao Brasil dos interiores, folclores, religiosidades, sempre me emocionou profundamente. O Caipira nasceu de um show que fiz dedicado a esse universo e para o qual o violeiro, escritor e compositor Paulo Freire (que estava no show) me mostrou um apanhado maravilhoso de músicas. Ali, eu entendi o tamanho desse universo, encomendei a ele, formalmente, uma pesquisa, que é uma playlist enorme de músicas e que foi de onde eu parti para compor o repertório do CD.
Obviamente, as músicas de compositores como Gilberto Gil, Roque Ferreira, Chico César e Xangô da Mangueira foram adaptadas para a linguagem utilizada no disco. As incluiu no repertório porque têm a ver com a proposta do trabalho?
O CD Caipira é o meu olhar artístico, com toda a liberdade criativa que eu tenho que ter, sobre o universo desse Brasil dos interiores. Essas canções, embora não tenham "nascido" caipiras, tem para mim sentido no repertório do CD. Não fiz um trabalho acadêmico sobre a música caipira. Fiz a minha homenagem artística. Então, para mim, elas couberam e são importantes neste projeto.
Pelo visto, utilizou bem o longo período da quarentena, decorrente da pandemia, ao desenvolver o projeto Ô de casas. Valeu a pena?
A vivência da pandemia provocou um enorme deslocamento na vida de todos. Claro, em diferentes graus, com diferentes condições de sobrevivência e de cuidados (como ficou claro, visível e inegável). Essa experiência só poderá valer a pena, em nome de tantas perdas e de tantas dores, se for transformada em consciência. O Ô de casas foi a forma que eu encontrei, com a generosa participação de tantos amigos que conheço e que admiro, de estar perto das pessoas, de ajudá-las a atravessar esse momento, de mostrar o quanto a arte é fundamental na vida de todos e o poder que ela tem de nos organizar, de nos curar mesmo. Foi uma coisa nascida no improviso que virou o meu remédio e que me fez respirar, seguir viva na música, trazer de volta uma identidade de Brasil que está ameaçada, encontrar meus amigos, mesmo à distância, e fazer uma rede de afeto por intermédio da música.
No dia 19, há estreia do Caipira online. O que esta nova série propõe?
Nós ainda estávamos fazendo a turnê do CD Caipira, patrocinados pela Icatu por meio da Lei Rouanet, quando veio a pandemia, e quatro espetáculos tiveram que ser cancelados. Ficamos esperando a pandemia passar para realizá-los, prorrogamos o projeto por mais um ano e, mesmo assim, fiquei com medo de não conseguir voltar com o show aos palcos por todas as dificuldades que ainda existem. Tivemos, então a ideia de transformar os quatro shows em 4 conteúdos digitais gravando, em estúdio, 32 músicas (eu e os músicos da turnê, Neymar Dias, Lulinha Alencar, Teco Cardoso, Luca Raele e Ari Colares) e convidar para cada episódio um artista que tem a ver com esse trabalho. Com os convidados, eu fiz vídeos à distância. Foi muito emocionante pra mim estar de volta com os músicos, refazer o repertório do show e criar mais 16 arranjos para músicas que não estavam no repertório. Foi um banho de música. E com os convidados, o Trio Conversa Ribeira, Paulo Freire, Sérgio Santos e Rolando Boldrin, a minha forma de homenageá-los.
O que traz o álbum que gravou no Japão com Guinga e José Pedro Gil? Como conheceu o cantor e compositor lusitano?
São dois trabalhos diferentes, ambos feitos antes da pandemia e lançados este ano. O CD Japan tour, foi gravado em 2019 no Japão durante uma turnê. Fizemos em quarteto, eu, Guinga, Teco Cardoso e Nailor Proveta. Foi uma turnê linda que virou CD. O projeto Estrada branca é um encontro das obras de Vinícius de Moraes e de José Afonso através, de um lado, da minha voz, com Nelson Ayres e Teco Cardoso e, de outro, da voz do português José Pedro Gil, Emanuel de Andrade e quarteto de cordas. Fizemos um espetáculo por algumas cidades de Portugal e gravamos ao vivo. Gravado em 2019, mas que também saiu este ano pela Biscoito Fino.
Além da participação em songbooks de Chico Buarque e de Guinga, você esteve ao lado de Edu Lobo na gravação do CD e DVD comemorativo dos 70 anos do cantor e compositor carioca, um dos ícones da MPB. Como foi fazer duo com ele em três canções?
Um sonho!
Tem algum novo projeto em vista?
Gostaria de fazer shows do CD Japan tour e do Estrada branca, coisa que ainda queremos fazer. No final deste ano, eu e o pianista André Mehmari vamos lançar, também pela Biscoito Fino, nas plataformas digitais o trabalho Milton, que gravamos durante a pandemia homenageando Milton Nascimento.
Qual é a importância do marido, flautista e saxofonista e produtor Teco Cardoso para seu trabalho?
A gente trabalha junto muito antes de sermos um casal. Nos conhecemos há mais de 20 anos. Eu assistia a shows do Teco com o violonista Ulisses Rocha quando comecei a fazer música. Fizemos parte de um grupo chamado Orquestra Popular de Câmera por anos. Sempre foi muito bom trabalhar com o Teco. Nossa união melhorou essa parceria. Ele acredita nos projetos junto comigo, me ajuda a fazê-los acontecer; além de tocar como ele toca!
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