Numa citação ao filósofo Michel Foucault, referencial no meio acadêmico, o diretor de cinema Déo Cardoso explica a discussão acerca da “microfísica do poder” presente no premiado filme de estreia dele, Cabeça de nêgo. A formulação crítica do enredo do longa, no qual um rapaz se vê em luta contra o racismo, evoca ativismo estudantil e incentiva mobilização coletiva. O diretor sublinha que o politizado conteúdo tem objetivo. “Me interessa que nosso povo conheça nossa própria intelectualidade. Que não fique à mercê de lideranças acadêmicas, empresariais e religiosas, que acolhem com uma mão e exploram com a outra”.
Políticas públicas condenáveis — principalmente, ligadas a segurança pública e moradia — comportamentos e modos de vidas racistas estendidos à atualidade chamam a atenção de Déo, que se identifica com Saulo, o protagonista do filme dele. “O racismo não só está estreitamente vinculado à política. Ele é, em si, um projeto de manutenção de privilégio econômico que precisa ser combatido”, avalia. O conteúdo da discussão extrapola o filme, e Déo evoca aparatos do racismo, que vão de bulas papais (documentos religiosos) até frenologia (uma pseudociência), passando por ideais eugenistas (suposta melhora genética da população). Já, no filme, dá muita atenção para fundamentos setentistas dos Panteras Negras, alvo de extrema admiração do ativista Saulo no longa Cabeça de nêgo.
Visto como “um fenômeno essencialmente político”, o racismo é abordado por Déo como uma construção epistemológica (elaborada com o direcionamento do conhecimento) secular e social. “Se olharmos para trás, e analisarmos somente do modelo mercantilista pra cá; colonizadores europeus buscaram respaldos forjados na religião e na ciência que justificassem que pessoas não-brancas eram ‘selvagens sem alma’ e deveriam ser forçadas a trabalhar sem piedade e mover os ‘moinhos de moer gente’ para construir o mundo que temos hoje”, avalia o cineasta.
No roteiro do filme cearense Cabeça de nêgo cabem elementos caros às periferias mundiais. Racismo e educação pública estão a postos para insuflar ocupações estudantis que moldaram parte do enredo do longa. Mas a ocupação empreendida por Saulo é solitária, isso até um momento-chave da trama. Déo Cardoso avança, daí, numa visão de mundo perfeita. “Seria um sonho ver nosso povo debatendo Frantz Fanon, Angela Davis, Panteras Negras, Carolina de Jesus, Lélia Gonzales, Beatriz Nascimento, Amílcar Cabral e Ailton Krenak”.
À bala e aos desmandos
“A Guerra ainda não acabou”, sentencia a protagonista do premiado longa documental Edna, que acumula exibições em países como Suíça, Itália, Uruguai, Estados Unidos, França, México, Chile e Coreia do Sul, tendo ainda futuras vitrines no quarteto Colômbia, Espanha, Canadá e Portugal. Ao dar relevância ao elemento humano, presente nos bastidores da Revolta dos Perdidos, em que camponeses de terras desapropriadas se voltaram contra grileiros, Eryk Rocha se apoiou em memórias dos embates nos anos de 1970, e que ocorreram no Pará.
“Edna é a constatação da brutalidade de nosso passado colonial, patriarcal, militar, passado que permanece no presente. Ela encarna o corpo-terra, a luta pela terra. Edna traz suas marcas, experiências que se entrelaçam com a tragédia histórica do Brasil e que tão cruelmente têm a ver com o nosso presente. Presente de feridas abertas e questões cruciais que ainda não fomos capazes de resolver como ‘povos’”, observa o diretor, em muito norteado pelos objetivos cinematográficos do pai, Glauber Rocha.
“Glauber é uma luz, uma inspiração e provocação constante para mim e para múltiplos cineastas e artistas do Brasil e do mundo. Sua obra ganha mais sentido a cada dia que passa. Ele é um abridor de novos caminhos, seu cinema é eterno”, demarca Eryk Rocha. Desvendar a complexidade e a realidade do universo de Edna rendeu a inspiração para a forma do filme, em parte abstrata.
“A arte pode ser ‘a aventura de experimentar a imaginação do outro’”, observa o diretor. O sonho, assumido por Edna, de partir de terras conflagradas sem destino específico, numa espécie de fuga de pesadelo, foi vital no processo. “Aquilo foi como um verso e indicou um portal para pensarmos as nuances da montagem e a partitura do filme”, avalia Eryk Rocha.
Duas perguntas / Déo Cardoso
Marcos Khirano/Divulgação
Seu filme (Cabeça de nêgo) afia os eleitores do futuro?
Acredito que o filme pode despertar pessoas a saírem de uma zona de conforto, caso elas vivam na zona do conflito. Acredito, também, que o filme possa reforçar ou fortalecer convicções de pessoas que já vivem a zona de conflito. Ficarei muito feliz caso o filme desperte o “chega!” nas pessoas oprimidas. Com estratégias, podem construir ambientes mais justos e independentes de se viver. Meu intuito maior é dialogar com meu povo. Trazer nossas heroínas, heróis e mártires para inspirar o público. Para evocar de que forma nossos ancestrais enfrentaram opressões num passado recente, para inspirar lutas por liberdades sociais que se fazem urgentes. Mas não consigo mensurar, nem de forma especulativa, se o filme tem esse poder de “afiar” eleitorado. Nem o povo negro nem a periferia são homogêneas. Nas últimas eleições, muitos eleitores das periferias votaram no próprio opressor, muitas vezes movidos por algoritmos, fake news ou lideranças mal intencionadas.
Que modelos e ações dos Panteras Negras mais impressionam?
Tenho relação muito próxima com os Estados Unidos, por ter nascido lá e vivido parte da infância no sul racista daquele país. Foi lá que o imaginário coletivo em torno dos Panteras foi se construindo em mim. Eram verdadeiros heróis e heroínas para a galera do hip-hop, que era a minha turma, num bairro predominantemente afro-americano. Havia uma aura em torno dos Panteras, que eu só fui dissecar e estudar mesmo no mestrado em cinema, em paralelo com a essência do curso em si. Então, os cafés das manhãs comunitários e gratuitos para as crianças em várias cidades estadunidenses e o sistema de atendimento de saúde comunitário, campanhas de prevenção à anemia falciforme — ações que constituíram a única experiência de saúde pública gratuita da história dos EUA — são as que mais impressionam. Além, é claro, das ações mais latentes de proteção armada da comunidade, fazendo valer a constituição americana.
Entrevista /Eryk Rocha
Helio Montferre/Esp. CB/D.A Press
Qual é a dimensão histórica emanada por Edna?
Edna vive a solidão de um testemunho que, por causa do medo e do risco, durante muito tempo foi silenciado. Ela habita um território conflagrado pelos conflitos e massacres pela luta pela terra. Edna quer falar, quer ser ouvida. Ela cria mundos, cria outros mundos dentro de um mundo infernal. Por isso escreve poesia e nos ensina a ouvir a voz do vento. Edna nos provoca a sonhar longe. Então seus cadernos, memórias e escritos são uma extensão de sua resistência. Sua poesia e imaginação são sua forma de luta e sobrevivência.
O gado a testemunhar tantos estampidos de bala na narrativa do filme tem a perspectiva de manada que pode ser inferida?
Não vejo dessa forma. O Araguaia, sul do Pará, Amazônia brasileira, território onde vive Edna, é historicamente uma região de muitos conflitos, massacres e disputas de terra. Esse território é uma imagem-síntese de país, é como se o Brasil coubesse lá. Lá é onde se faz presente de forma brutal a política do “BBB”, do boi da bala e da Bíblia. Forças essas que permeiam a história de violência e autoritarismo no país, e que hoje foram ainda mais legitimadas pelo atual Estado/governo.
No filme, há uma imprecisão nos fatos que cercam o passado de Edna como ativista. Fragmentar um discurso histórico é arriscado?
Para mim, um dos desafios do cinema é: “como traduzir formas de perceber e sentir mundos?”. Isso na perspectiva bruta da linguagem, imagem, som, ritmo, corpo, palavra, luz. Lembro quando Edna nos mostrou alguns dos seus cadernos intitulados Histórias de minha vida, com seus escritos e, quase sussurrando, nos disse: “Os cadernos são minha forma de desabafar”. Edna trazia seus poemas, uma mistura de memórias pessoais e memória política do país. A melodia da sua voz e o seu pensamento projetavam uma coexistência de tempos, entrecruzando memória vivida, desejo e fabulação.
De que modo crê instrumentalizar teu espectador, ao criar uma fita como Edna?
Realizo um filme para descobrir o que ele é, se já soubesse o que é eu não precisaria fazer. Então, o cinema pode criar-descobrir mundos. O cinema como uma arte que projeta e materializa uma memória que resiste à morte, que combate o efêmero. Uma memória ligada à história não oficial dos povos. Edna Rodrigues de Souza nos traz a singularidade de sua história e ao mesmo tempo ela é um “eu coletivo”, uma multidão de mulheres. Edna liga vários tempos e gerações de mulheres brasileiras e latinoamericanas. Ela é um fio da história e da luta, por isso em sua poesia coexistem o passado, o presente e o futuro.
No exterior, os prêmios trazem que sinalização de reconhecimento? Há recado da intelligentsia votante para o Brasil?
Há cinco meses desde a estreia mundial de Edna no Visions du Réel (Suíça) e da estreia brasileira no É Tudo Verdade, felizmente, o filme está voando pelo mundo, e recebendo retornos e prêmios muito bonitos. Nos festivais que pude estar presente senti as pessoas muito emocionadas e provocadas pelo filme, e também instigadas e conectando Edna com o atual contexto político brasileiro.