Joseana Paganine leu Clarice Lispector, pela primeira vez, aos 8 anos, quando ganhou de presente da madrinha, o livro A vida íntima de Laura: “Achei estranhíssimo, por isso, nunca o esqueci”, conta a autora. Depois, na adolescência, se deparou com O livro dos prazeres ou Uma aprendizagem, no Instituto do Livro, em Brasília. Foi como se tivesse se encontrado consigo mesma: “O que mais me impacta em Clarice é a capacidade que a escrita dela tem de desvelar camadas do real. Tudo o que ela escreve está no mundo, a gente apenas não vê, preso que estamos ao olhar banal do cotidiano.”
Joseana acaba de publicar O engajamento poético em Clarice Lispector (Editora Horizonte), ensaio escrito a partir de tese de mestrado apresentada na Universidade de Brasília (UnB). Durante muito tempo, Clarice sofreu com a pecha de ser “alienada” das questões sociais e políticas. Com estilo claro e elegante, Joseana mostra que, no último livro, A hora da estrela, Clarice respondeu às críticas de alienação de uma maneira engenhosa e inventiva.
Clarice tocou poucas vezes, de maneira frontal, em temas políticos e sociais em sua ficção. Clarice era alienada?
De maneira alguma. Mas não era uma pessoa engajada no sentido mais corriqueiro do termo. Ela mesma não se considerava engajada, mas tinha consciência política e social. Isso se manifesta de modo mais evidente na participação dela em passeata contra a ditadura militar em 1968 e em alguns textos, como Mineirinho, uma crônica fortíssima sobre a violência policial no Rio de Janeiro, aliás tema que permanece bastante atual.No entanto, sua literatura, de maneira geral, não pode ser considerada engajada do modo como tradicionalmente se entende o engajamento, isto é, uma literatura preocupada em fazer denúncia e em tematizar questões sociais e políticas. Clarice e alguns escritores do período, como Osman Lins, incorporam a tensão política à própria linguagem, como já destacou a crítica Flora Sussekind.
Você acha que A hora da estrela é uma resposta de Clarice a esse questionamento?
Acho que sim, e também a outros questionamentos que foram feitos à sua obra ao longo do tempo. Ela não optou à toa por um narrador masculino, Rodrigo S.M., em seu único romance que trata mais claramente de uma questão social. É uma resposta também aos críticos que a acusavam de subjetivismo, de excesso de lirismo, de praticar uma escrita “feminina”. Em determinado momento, Rodrigo S. M. diz: “até o que escrevo um outro escreveria. Um outro escritor, sim, mas teria que ser homem porque escritora mulher pode lacrimejar piegas.”
O que você chama de engajamento poético e como ele se manifesta em Clarice em A hora da estrela? Qual a diferença entre a abordagem de Clarice e as do romance nordestino de 1930 e do romance-reportagem de 1970?
Nos romances representantes do que chamo de engajamento poético — cito outros dois, além de A hora da estrela: Avalovara, de Osman Lins, e Um copo de cólera, de Raduan Nassar — o questionamento não se reduz aos contextos sociais e políticos, mas alcança a própria linguagem. Esses autores têm na metalinguagem e no questionamento das estruturas narrativas e das formas de representação simbólica da realidade o cerne de suas obras.
Basicamente, a diferença em relação ao romance nordestino de 1930 e ao romance-reportagem seria essa: esses dois últimos estão mais preocupados com o conteúdo do que com a relação conteúdo e forma, com questionar a realidade do que questionar a linguagem. É lógico que esses romances também têm imenso valor e seu lugar na formação do público leitor e da literatura nacional. Mas, ao questionar o próprio modo como a linguagem apreende o real, autores como Clarice, Osman e Raduan são capazes de ultrapassar as camadas políticas e sociais e alcançar profundezas filosóficas e existenciais.
A temática social passou a ser estigmatizada na literatura?
Foi estigmatizada por um tempo, e acho que hoje está ressurgindo, por motivos óbvios. Esse ressurgimento foi o motivo que me levou a publicar agora esse ensaio, escrito há 20 anos como uma dissertação de mestrado defendida na Universidade de Brasília, sob orientação da professora Regina Dalcastagnè. A busca na internet por esse trabalho cresceu bastante nos últimos tempos.
Em que medida a abordagem de Clarice em A hora da estrela é uma provocação e um estímulo para produzir uma literatura com o sentimento do mundo, para citar Drummond?
A temática social foi estigmatizada, pois é muito difícil produzir uma literatura engajada de qualidade, a necessidade de transmitir a denúncia tende a rebaixar a dimensão criativa e poética da obra. Por isso, muitos romances engajados escritos nos anos 1970 ficaram datados.
Sobre A hora da estrela ser provocação e estímulo, com certeza o é, como todo clássico. A literatura e a arte nos ensinam a melhor ler ou ver o mundo, inclusive o que está nas entrelinhas ou velado. Em A hora da estrela, o narrador Rodrigo S.M. diz: “Como é que sei tudo o que vai se seguir e que ainda o desconheço, já que nunca o vivi? É que numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance o sentimento de perdição no rosto de uma moça nordestina”. Com a literatura, podemos viver o desconhecido.
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