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Poeta Ítalo Moriconi lança coletânea de ensaios 'Literatura, meu fetiche'

Em entrevista ao Correio, Ítalo Moriconi, autor de Fetiche literário, analisa o panorama múltiplo, dispersivo e rico da escrita na era da internet

Professor, poeta e crítico literário, Ítalo Moriconi tem um pé na academia e outro no mercado. Ele participou intensamente dos debates sobre as transformações na produção e na recepção da literatura nas últimas décadas. Ao mesmo tempo, organizou as antologias Os 100 melhores contos brasileiros e Os 100 melhores poemas brasileiros, Torquato Neto essencial ou As cartas de Caio Fernando Abreu. Ítalo acaba de lançar a coletânea de ensaios Literatura, meu fetiche (Cepe Editora), em que desenvolve reflexões e embates apaixonados com personagens e temas contemporâneos: de Torquato a Antonio Candido, de Ana Cristina César a Silviano Santiago, de Clarice Lispector a poesia na internet.

Ítalo nasceu no Rio de Janeiro, mas cresceu em Brasília, onde se formou em ciências sociais pela UnB. Em seguida, retornou ao Rio, onde fez mestrado em letras na PUC-Rio e onde lecionou na Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Nesta entrevista, ele fala sobre as vertiginosas transformações da escrita na era virtual, com visão democrática e espírito crítico.

Entrevista / Ítalo Moriconi

Antes, um autor publicava um livro, pedia a algum crítico ou escritor que escrevesse a orelha e lançava a obra. E, hoje, a difusão do livro se faz pela capacidade do autor transitar nas redes sociais e pelo número de seguidores que consegue amealhar?

É exatamente isso, o leitor literário hoje é o seguidor de alguns autores. A partir daí, formam-se redes e encontros. Sobretudo tem uma dispersão muito grande, não há como unificar os valores literários. Essa é uma grande dificuldade para uma pedagogia da literatura. Claro que trabalha com um cânone, mas, na prática, você pode entrar por qualquer lugar. Com a internet, a proliferação de autores é impressionante, não depende mais nem de uma estrutura industrial para fazer um livro.

É possível transmitir o conhecimento da literatura sem um cânone, sem referências de excelência?

Existe uma dissolução, um certo cânone escolar sempre vai haver. No ensino médio, não partem de um cânone em si. Na universidade, se trabalha com um cânone. Agora, depois disso, a crítica se depara com um contexto complexo que a gente tem de ajustar. Os professores mais jovens são mais flexíveis em seus currículos. Na verdade, existe uma pluralidade de cânones. Meu livro é marcado pelos 10 e 15 primeiros anos do século. Mudou muito a partir de 2013 e 2016, a literatura voltou a ser o lugar de ativismo e resistência de cultura e raça. Voltou uma onda de politização. Quando escrevi, o desafio era enfrentar o mercado e a politização. É a cultura que vai ser espaço da crítica mais forte.

Se Carlos Drummond de Andrade iniciasse a carreira literária dele hoje na era das redes sociais, você acha que ele teria alguma chance de desenvolver a obra portentosa que realizou?

Olha, acho que o segredo do modernismo foi ter conquistado um espaço nobre nos jornais que eram lidos pela elite política brasileira. Além disso, o ambiente era mais centrado do que o da internet, que é muito fragmentada e dispersiva. Havia, na época do modernismo, uma necessidade de criar uma literatura, uma arte plástica e um patrimônio artístico modernos, que se tornassem a cultura oficial brasileira. O Gustavo Capanema foi decisivo. Colocou Drummond no Ministério da Educação. Hoje, é completamente diferente com a internet. Acredito que ele construiria o seu nome em determinado circuito, dependeria menos de uma consagração oficial e mais do mercado.

Existe mais escritores e poetas do que leitores na era virtual?

É, acho que é uma grande questão histórica, estamos vivendo uma mutação. Na cultura gutemberguiana do livro, era preciso ser um leitor para ser um escritor. Na cultura protestante, a leitura era uma grande conquista individual. Mas, agora, às vezes, os novos autores chegam à leitura depois de escrever. O direito a escrita é um dos fenômenos contemporâneos. Nas oficinas das periferias, primeiro você escreve, depois, você lê. O direito à escrita é prioritário em relação ao direito à leitura. Todos têm mais acesso aos meios de difusão, com um simples computador ou celular. Todas celebridades se tornaram escritores. A ficção moderna tal como a conhecemos surgiu da necessidade da sociedade se pensar. Com o movimento gay, o movimento dos negros ou da mulher, ocorreu uma inversão. O leitor de hoje é um seguidor. Ele é limitado, mas, ao mesmo tempo, existe o resgate, tem jovens que descobrem a Jane Austen ou a Clarice Lispector. Existem youtubers jovens que gravam vídeos sobre os clássicos da literatura.

A qualidade das obras que circulam na internet é sancionada por quem? Qual o papel dos cursos de letras nesta babel virtual literária?

Eu acho que os cursos de literatura brasileira estão caminhando muito numa rota para a escrita criativa. As cabeças mais pensantes estão mais interessadas em produzir obras literárias do que em fazer crítica literária. Uma coisa é achar que o realismo fechado é critério absoluto. É preciso ter outros critérios depois de Beckett. Qualidade é algo que está em pauta. Quando todos escrevem, é preciso saber por que um é melhor do que o outro. Mas, na verdade, para os jovens está interessando menos do que a pertinência ou a urgência dos temas. O critério maior dos protagonistas das próprias gerações é o de pertinência.

Mas a qualidade das obras existe?

Sim, a diferença de qualidade existe. O editor de um livro me convocou para avaliar uma obra. Colocou lado a lado uma versão do mesmo texto em prosa e em poesia. Às vezes, eram idênticas, mas, em outras vezes, era diferente. No entanto, quando olhei as propostas, percebi, claramente, que em alguns casos que a prosa era melhor que a poesia. A explosão literária desencadeia um processo de volta à intuição absoluta. As regras de avaliação da literatura mudam muito. Hoje, é o fator documental e autobiográfico que predominam. Menciono Torto arado, de Itamar Vieira, que fez muito sucesso. Isso tem a ver com o trabalho de marketing, mas a obra é relevante, relata a questão dos quilombolas, da população periférica negra.

O que você caracteriza como a “hora do lixo” em Clarice Lispector? Por que isso é importante na obra dela?

Eu acho sim. O título original era a hora da estrela ou a hora do lixo em Clarice Lispector. A expressão é dela mesma, sofria muito com a obra dela, criticava os livros eróticos: todos têm a hora do lixo. Tento situar A hora da estrela neste drama que ela passava, uma espécie de esgotamento da sua capacidade literária. E, aí, então, ela cria uma metáfora muito crítica à pretensão de uma literatura que fale do outro. Gosto de A hora da estrela pelo ceticismo auto-irônico, por afirmar a impossibilidade do narrador Rodrigo fazer realismo socialista.

Estava reagindo contra uma leitura completamente equivocada de A hora da estrela, embora possa levar a produções interessantes. A hora da estrela é celebrada como obra-prima de literatura social. Mas é uma obra complexa. Clarice não se detém na Macabea, ela é uma tentativa de personagem. Ela coloca em primeiro plano o escritor Rodrigo e a própria construção da narrativa. É uma reação em relação à demanda social da literatura dela. Os meus preferidos é Laços de família e Água viva, que é um texto de vanguarda.

Clarice disse que sonhava com o anonimato. Como é que você vê o fato de ela ter se tornado uma celebridade das redes sociais, citada a todo momento?

As biografias de Clarice, principalmente as de Benjamim Moser e de Nádia, mostram que ela sofreu muito com a banalização da literatura dela. Era um dos maiores sofrimentos dela, ela estava sendo lida como autoajuda. É a grande sábia que fala sobre a vida. A literatura de Clarice tem poder de autoajuda, sim. Mas isso banaliza a complexidade da literatura dela, sobretudo quando a utilizam para uma visão sentimentalista. Ela tem uma profundidade existencial muito grande. Não é água com açúcar. A maça no escuro é sobre um assassinato. Mas tem, também, muito humor, chiste e ironia. Você precisa contextualizar na obra, senão ela se perde. Isso acontece também com Caio Fernando Abreu.

Torquato Neto dizia que um poeta não se faz com versos. Até que ponto é verdadeira essa afirmação?

O Torquato dizia que para ser poeta era preciso ter a uma radicalidade interior. Na prática, não conseguiu realizar esse equilíbrio. Clarice vivia essa ambiguidade entre o fetiche do oficial e o da solidão do autor. Clarice casou com um diplomata, teve uma vida relativamente estável. Torquato radicalizou de maneira extrema. Os últimos dias dele foram de drogas, álcool e suicídio. Ele achava que não era possível fazer poesia autêntica com concessão ao senso burguês. Mas tem de solucionar essa contradição, senão não consegue viver.

Umberto Eco afirmou que a internet deu voz aos idiotas. Você acha que, com as redes sociais, estamos condenados, de maneira inapelável, à imbecilidade coletiva?

Eu não faço o gênero apocalíptico. A imbecilidade é uma característica da sociedade de massas. O fascismo só tem 100 anos. Acho que democracia envolve um diálogo permanente. Os intelectuais refinados existem, mas não vão ganhar nada no grito. Sem negar a imbecilidade, estamos vivendo, ao mesmo tempo, um momento de intensa criatividade.
Falta sistematizar o que está sendo produzido. Os modernistas viviam em um mundo mais imbecil. A arrogância não leva a lugar nenhum. O próprio gueto acadêmico não existe mais. Tem de estabelecer um campo de conversa.

O que percebe como alentador?

Vejo questões importantes emergindo: a identitária de raça, tem uma coisa sofisticada, que é a narrativa da ancestralidade. Os nossos laços com a África. O modernismo descobriu o Brasil, mas talvez tenha de descobrir a ancestralidade africana. Os índios dão aulas nas aldeias com as línguas originais. Estão criando espaços multilinguísticos. São coisas totalmente imprevisíveis.

Literatura, meu fetiche
Cepe Editora / 223 páginas