Na foto da contracapa do romance Os planos, cinco meninos vestidos com camisetas listradas escalam a estátua da Justiça vendada em frente ao Supremo Tribunal Federal (STF). A cena se passa nos anos 1970, tempo em que a guerra na Praça dos Três Poderes era mais velada, e foi registrada pelo fotógrafo Luis Humberto. Pouco antes de morrer, em fevereiro deste ano, ele cedeu a imagem ao escritor e jornalista Carlos Marcelo. A imagem é também uma espécie de retrato da história narrada no romance. Uma coincidência, segundo Carlos, mas uma lembrança de quantas Brasílias existem na capital que abriga o coração do poder no país.
Os planos é um romance de geração e quase um livro de época, como define o autor, embora trate de um período muito recente. Cinco amigos, quatro homens e uma mulher, filhos dos primeiros moradores da cidade inaugurada nos anos 1960, vivem um presente no qual crime e poder se entrelaçam e um passado no qual a utopia ainda povoava as perspectivas dos brasilienses. Se, no passado, o quinteto não passava de um grupo de jovens muito ligados ao ambiente musical que fez a cidade ser conhecida como capital do rock, aos 60 anos eles já não têm sonhos.
Ou, pelo menos, trocaram os sonhos por planos moralmente questionáveis, últimas cartadas de uma geração confiante na certeza da impunidade. Duílio é um advogado rico, credor da suplência do sogro senador. Rangel é um delegado nada legalista. Tide é o amigo que usufrui das benesses dos dois e Hélio, um comerciante eventualmente preterido na ponte entre sucesso nos negócios e dinheiro público. Diana, a quinta do grupo, é ex-mulher de Duílio.
Um crime cometido no passado e outro no presente servem de fio para o autor ir e vir. A Lava-Jato mobiliza a República enquanto os amigos planejam um assassinato que está longe de ser um plano comum e único. Há, na verdade, vários planos, conforme os interesses de cada um. Figura que une os dois cenários, um jornalista investigativo das antigas é uma das figuras mais interessantes do romance, que tem na construção de personagens a base para falar de uma cidade muitas vezes mal compreendida, mas também das pessoas que a habitam. “Acho que o livro, talvez, escancare algo que está próximo, sim, de todo mundo que vive ou viveu em Brasília, que é essa proximidade com o poder e, muitas vezes, uma proximidade que não é a mais saudável possível. Todo mundo, ou quase todo mundo, conhece alguém que se deu bem em algum esquema”, explica Carlos Marcelo.
A música perpassa todo o romance e, tanto quanto Brasília, é um dos personagens. “Música, para mim, é um fator tão importante quanto as próprias palavras; é elemento que une pessoas e desperta uma cumplicidade que transcende diferenças ideológicas, geracionais ou faixas etárias”, avisa Carlos. Autor de Renato Russo: O filho da revolução e O fole roncou, em coautoria com Rosualdo Rodrigues, o jornalista cobriu a cena musical da cidade para o Correio Braziliense, do qual foi repórter e editor executivo, e é ex-programador da Rádio Cultura.
Os planos começou a tomar forma há mais de uma década, quando o autor entrevistou moradores de Brasília que conviveram com Renato Russo. “Percebi que alguns deles carregavam certa amargura por não terem se tornado famosos, por não terem ganhado projeção nacional como o Renato. E veio essa ideia de pessoas que foram adolescentes na primeira geração da cidade e que, depois, sonharam em viver de e fazer música, mas a vida levou para outros caminhos”, conta o autor, que hoje é diretor de redação do Estado de Minas. “Me interessava fazer esse contraponto da Brasília dos anos 1970 com os tempos de hoje. Narro coisas que não vivi, porque não vivi a cidade nessa época, e isso me permite criar muito mais.”
Juntar essa geração e a Lava-Jato era um caminho intrigante, mas também natural. Carlos queria colocar no mesmo fio narrativo a geração que sonhou antes de mergulhar no desalento e na tormenta de uma vida corrompida. “E tem uma coisa que sempre me impressionou durante a Lava-Jato, que é o preço da tranquilidade. Como você vive num país onde predomina a impunidade, algumas pessoas se permitem fazer coisas para obter vantagens, mas não dormem tranquilas porque a Polícia Federal pode acordá-las no dia seguinte”, reflete o autor, ao lembrar o desejo de um sono tranquilo de um dos personagens.
Narrado em terceira pessoa, com uma voz onisciente e quantidade considerável de personagens, Os planos é diferente de Presos no paraíso, primeiro romance de Carlos Marcelo, no qual duas vozes narrativas se entrelaçam para contar uma história passada em Fernando de Noronha. Os planos está, na definição do autor, mais para um drama do que para um romance policial. “São os dramas desses personagens que os fazem cometer crimes. Esse livro reflete um pouco de minha observação da cidade. O que foi e o que poderia ter sido”, repara.
Os planos
De Carlos Marcelo. Letramento, 284 páginas. R$ 55