Brasília recém-fundada foi sede para sequências clássicas nas quais um dos maiores ícones da renovação do cinema, o astro Jean-Paul Belmondo, que morreu ontem, aos 88 anos, extravasasse seu destemido talento. Foi no ano de 1963, ao estilo James Bond, que Belmondo pôs à prova o equilíbrio, na pele de Adrien, destacado para libertar a sequestrada Agnès (Françoise Dorléac), no clássico O homem do Rio, de Phillipe de Broca. Na aventura era possível identificar o traçado da Rodoviária, a Esplanada dos Ministérios e o Palácio da Alvorada. Com estrondoso sucesso, o filme integrou uma das 90 produções estreladas por Belmondo. De acordo com informações de seu advogado, o ator morreu “tranquilamente”, em Paris.
Formado pelo Conservatório de Artes Dramáticas e com ampla vivência teatral, ele ganhou as telas do cinema na espirituosa ruptura de convenções propostas pelo estreante cineasta Jean-Luc Godard, em Acossado (1959). A partir do roubo de um carro, o protagonista Michel mata um policial e, dando partida ao cunho da Nouvelle Vague, corre para o amor encontrado em Patrícia (Jean Seberg), candidata à intelectual que habita os Champs Élysées.
Na rota de fuga de Michel está o refúgio num apartamento parisiense e o remodelar (na tela) do ídolo dele: Humphrey Bogart. Entre o frescor da linguagem de cinema, a rebeldia constituída por Belomondo encontra pares em James Dean e Marlon Brando. Numa escalada estrondosa, o ator trintão assinou a autobiografia, em 1963, chamada de 30 anos e 25 filmes.
Até o acidente vascular cerebral que praticamente o tirou de cena, em 2001, Bébel, como era carinhosamente conhecido, se estabeleceu como um dos maiores ícones do cinema. Ex-candidato a boxeador, nascido em Neuilly-sur-Seine (nas adjacências de Paris), ele era filho de pai escultor e mãe pintora. Símbolo do que seja um anti-herói, Belmondo estrelou para Godard O demônio das onze horas (1965).
Ainda que Godard tenha pavimentado a carreira de Belmondo, com quem trabalhou no provocativo Uma mulher é uma mulher (1961), Belmondo abraçou a diversidade de papéis. Numa das interpretações mais emotivas, estrelou Um homem e seu cachorro (2008), que demarca a derrocada de um idoso numa sociedade cruel (e cujo roteiro já havia rendido o clássico Umberto D., de Vittorio de Sica). Esse mesmo diretor italiano escalou Belmondo para Duas mulheres (1961), capaz de render Oscar para Sophia Loren, e que, baseado em texto de Alberto Moravia, tratava da invasão à Itália na Segunda Guerra.
Potência cênica
Em 1966, sob a direção do gênio René Clement, Belmondo teve seu momento em Paris está em chamas?, no relato da ocupação nazista, com elenco estrelado, que trazia dezenas de astros como Kirk Douglas, Orson Welles e Jeannne Moreau, com quem Belmondo esteve novamente, sob a direção de Paul Brook, em Moderato contabile (1960), numa trama de amor e violência emanada por texto de Marguerite Duras.
Numa carreira seletiva, Belmondo filmou com gênios como Agnès Varda (One hundred and one nights) e Alain Resnais (Stavisky, 1974), tendo vencido prêmios como a Palma de Honra em Cannes (2011) e o tributo pela obra de uma vida, no Festival de Veneza (2016). Com o longa-metragem Itinerário de um aventureiro (1989, de Claude Chabrol) venceu o prestigiado César de melhor ator, encarando a trajetória de um empresário que repensa a vida a partir de uma viagem para a África.
Além de um retorno aos palcos, os anos de 1990 viram Belmondo brilhar como o clássico personagem Jean Valjean de Os miseráveis, sob direção de Claude Lelouch. O pai (na vida real) de Patricia, Florence, Stella e Paul, ele foi cogitado para uma releitura de Casablanca.
Exemplo de um astro capacitado a projetar insuspeita sensualidade, Jean-Paul Belmondo, seguiu pela carreira, estabelecendo tipos durões, como em Borsalino (1970), no qual dividiu a estilosa cena de gângster com o colega Alain Delon; brilhando ao lado de beldades como Jacqueline Bisset, em O magnífico (1973) ou dando vida a um agente especial traído, em O profissional (1981).