Fred di Giacomo está convencido de que o melhor da produção literária brasileira não é feito por brancos nem por homens. O pesquisador, escritor e jornalista vem falando sobre isso há algum tempo. O fez na Feira de Frankfurt, em 2019, em vários artigos e entrevistas e levou o tema para o doutorado na Freie Uniersität de Berlin. Agora, ele volta à questão com Geração 2010 — O sertão é o mundo, uma seleção de 25 autores que o pesquisador considera ser parte da boa produção feita pela nova geração, gente que publica de forma independente ou não, e que está longe da cena literária das grandes capitais.
O foco, ele avisa, não é fazer uma lista dos melhores escritores, o que seria impossível com 25 nomes apenas, mas destacar “ótimos autores vindos dos sertões, florestas e pequenas cidades”. Nas narrativas, está o interesse de Giacomo, especialmente naquelas descolonizadas e de temáticas particulares. Nessa lista entraram, então, nomes como Ailton Krenak, Marcia Kambeba e Mailson Furtado, ganhador do Prêmio Jabuti de 2018.
Alguns nomes premiados estão na coletânea de contos, como o de Itamar Vieira Júnior, que levou o Jabuti e o Oceanos 2020 por Torto Arado; Raimundo Neto, vencedor do Prêmio Paraná; Micheliny Verunschk, pernambucana ganhadora do Prêmio São Paulo; e Jarid Arraes, cearense e vencedora do prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). Para Giacomo, a coletânea é uma prova de que a literatura brasileira vive o melhor momento dos últimos 50 anos. “Nossa literatura é escrita por autores e autoras espalhados pelo Brasil todo, muitos dos quais são escritores e escritoras negros, indígenas, LGBTQIA+ e vindos das classes trabalhadoras. Mas não são bons autores por terem esses lugares de fala apenas; fazem, de fato, uma arte excelente. Como leitores, críticos e prêmios têm reconhecido”, explica.
A demanda por esses autores fora do eixo cresceu, segundo Di Giacomo, após a adoção de sistemas de cotas e política de inclusão que permitiram o acesso de minorias e de povos discriminados à universidade. “Acredito que, graças à luta dos movimentos sociais, dos movimentos negros, dos movimentos indígenas, nós tivemos avanços que permitiram uma pequena “reforma agrária do campo literário brasileiro. Quem são os autores mais populares hoje no Brasil? Krenak, Itamar Vieira Junior, Djamila Ribeiro e Jarid Arraes? Nenhum deles é branco...”, constata. “Com leitores demandando esses livros, as editoras e prêmios tiveram que abrir suas portas para continuarem vendendo. O Torto Arado vendeu 200 mil exemplares, é muito em um Brasil que não lê. A Djamila Ribeiro é best-seller. Nenhuma editora está fazendo trabalho social publicando autoras negras ou indígenas, elas estão lucrando com isso. Algo que o racismo e o colonialismo nunca permitiram que elas pensassem ser possível.”
História do livros
Livros que falam sobre outros livros e literatura ocupam destaque entre os lançamentos recentes de autores brasileiros. Fascinado pela literatura russa, o jornalista e tradutor Irineu Franco Perpetuo escreveu Como ler os russos, um guia para entender um pouco mais essa produção. A gênese de um gênero é o tema de Romance — História de uma ideia, de Julián Fuks, e uma história da literatura brasileira é o foco de Duas formações, uma história — Das ideias fora do lugar ao perspectivismo ameríndio.
Como ler os russos nasceu de uma encomenda do editor André Conti, da Todavia, para o jornalista Irineu Franco Perpetuo. “Podemos dizer que o André me pautou, e eu, simplesmente, executei”, diz o autor. Ao escolher de autores clássicos como Pushkin, Gogol, Dostoiévski e Tolstói a nomes contemporâneos como Vladímir Sorókin e Dmítri Bykov, Irineu faz um passeio nada monótono pelos grandes temas e inquietações dessas produções.
Foi, ele mesmo diz, um exercício de mediação entre o cânone da literatura russa na Rússia, no Ocidente e no Brasil. “Trata-se de um livro escrito por um brasileiro, para brasileiros. Portanto, a prioridade de Como ler os Russos é falar dos russos que os brasileiros podem ler — mas sem perder a perspectiva geral”, avisa. “Procurei ser o mais abrangente possível, partindo dos primórdios, na Rússia medieval, e chegando até os autores contemporâneos.”
A história da literatura brasileira com uma perspectiva contemporânea e questionamentos sobre como contá-la nos dias de hoje guia Luís Augusto Fischer em Duas formações, uma história. Resultado de um pós-doutorado na Universidade Sorbonne — Paris 6, o livro traz questões do tipo como incluir a produção mais recente na narrativa dessa história a partir de modelos historiográficos tradicionais e se faz sentido traçar uma nova história para a literatura brasileira. Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Fischer faz uma crítica à maneira como essa história vem sendo contada e propõe novas formas de olhar para a produção do século 21.
» Três perguntas para Fred di Giacomo
Sua pesquisa foca a mudança no panorama literário brasileiro. Qual o impacto disso nas narrativas? Do que trata essa “nova literatura brasileira”?
Uma mudança imediata disso na literatura sé que quem era “objeto” passa a ser tornar “sujeito”. Quem era “tema”, passa a tornar-se “autor”. Maílson Furtado fala: quem escrevia antes sobre os sertanejos eram os senhores de engenho. Há uma mudança na raça e no gênero das protagonistas dos nossos contos e romances e dos cenários onde eles se passam. Há um retrato menos estereotipado e “folclórico” de questões de raça e gênero, das religiões de matriz africana e dos diferentes povos indígenas e há o que Grada Kilomba, que é uma mulher negra, resume como: “enquanto escrevo, eu me torno a narradora e a escritora da minha própria realidade, a autora e a autoridade na minha própria história. Nesse sentido, eu me torno a oposição absoluta do que o projeto colonial predeterminou.”
Como as editoras independentes têm participação nisso?
Sem as editoras independentes não haveria essa mudança — que ainda é pequena pensando no contraste entre o perfil dos autores publicados no Brasil e o da maioria do povo brasileiro. O poeta cearense Mailson Furtado ganhou o prêmio de livro do ano, no Jabuti 2018, com uma obra independente. Isso é revolucionário. Dois anos depois a poeta pernambucana Cida Pedrosa ganhou o mesmo prêmio com uma obra lançada pela CEPE, de Pernambuco. Ambos definem-se como sertanejos, vêm de famílias pobres. A revolução está em tomar os meios de produção. Acho que 90% dos autores que incluí na antologia foram lançados por editoras pequenas espalhadas pelo Brasil. Seria impossível para meia dúzia de editoras do Sudeste terem essa capilaridade e visão.
Por que não há autores do DF ou de Goiás na coletânea?
Antologias são falhas. Sempre. Uma ponta de iceberg destacada por alguém, enviesado, que tenta resumir o gelo infinito. Sobre Brasília, especificamente, eu evitei incluir autores das grandes capitais, espaços hegemônicos que estiveram sempre muito representados no campo literário brasileiro. Já a falta de nomes do Centro-Oeste foi incompetência do organizador mesmo, no caso, eu. Em minha pesquisa não encontrei contistas ou romancistas, do Centro-Oeste, a tempo de fechar o livro, que fossem de cidades pequenas e tivessem se destacado na literatura dos anos 2010. Nesse meio tempo, tomei contato com a literatura de Fabrina Martinez, mas já era tarde. Vale lembrar que o livro começou em 2019 e ficou pronto em 2020 — a pandemia é que atrasou seu lançamento para 2021.
Conheça:
Geração 2010 – O sertão é o mundo
Organização: Fred Di Giacomo. Reformatório, 100 páginas. R$ 46
Romance – História de uma ideia
De Julián Fuks. Companhia das Letras, 210 páginas. R$ 47,92
Duas formações, uma história — Das ideias fora do lugar ao perspectivismo ameríndio
De Luís Augusto Fischer. Arquipélago, 400 páginas. R$ 79,90
Como ler os russos
De Irineu Franco Perpetuo. Todavia, 300 páginas. R$ 69,90