O luto e o olhar sobre os ancestrais e sobre a memória são os temas de três livros que, em ano de pandemia e de muitas perdas, podem ajudar a refletir sobre a morte e a ausência. A autora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie fala sobre a perda do pai em Notas sobre o luto e a brasileira Noemi Jaffe escreve um memorial para a mãe em Lili – Novela de um luto, enquanto Djamila Ribeiro oferece um olhar sobre a ancestralidade em Cartas para minha avó.
Noemi perdeu a mãe em fevereiro de 2020 e começou a escrever logo em seguida. A intenção, inicialmente, não era dar forma a um livro e sim manter viva e lembrança de dona Lili. A autora tinha medo que a memória física da presença da mãe se transformasse em saudade. No pequeno livro, as lembranças se organizam de maneira muito delicada quando Noemi transita entre descrições do cotidiano e seus próprios sentimentos em relação à mãe, à morte, à presença e à ausência.
Por que dividir com o leitor uma intimidade tão difícil e sofrida? “Acho que tem muitas respostas para isso. Uma delas é o fato de que todos os brasileiros, hoje, estão de luto pelas perdas, pela doença, mas também por um país, com esse governo que está aí, a gente está sentindo que está perdendo o país que a gente conheceu”, conta. Por outro lado, ela acredita, tudo que um escritor escreve, mesmo que seja sobre outras pessoas, revela algo da própria intimidade. “A gente escreve falando de si e também do outro que mora dentro da gente”, diz Noemi.
Livros sobre luto costumam gerar identificações universais em pessoas que viveram a dor da perda. Para Noemi, isso pode ser fruto da maneira como as sociedades ocidentais lidam com a morte. “São sentimentos universais. Talvez não universais, mas ocidentais. Nós, no Ocidente, não nos preparamos nem para a velhice, nem para a morte. A gente não está preparado para os buracos, a gente fica querendo tampar. E como a morte e a doença são buracos, em vez de compreender, a gente se aliena desse sentimento. Quando ele vem, não sabemos lidar. Muitas sociedades lidam de outra forma, se preparam mais”, acredita.
Na sociedade de origem de Chimamanda Ngozi Adichie, a morte é recebida de forma diferente e o luto vem acompanhado de rituais que duram dias, mas os sentimentos de ausência, impotência e saudade são os mesmos. A autora de Americanah perdeu o pai em junho de 2020, em meio à pandemia. Com a família separada em países diferentes e impedida de se deslocar por causa dos sucessivos lockdowns, a despedida do pai, que morreu na Nigéria, foi vivida em meio a incertezas e muita angústia. O processo é descrito em Notas sobre o luto, um livrinho muito emocionante no qual Chimamanda fala da história de sua própria família, mas também daqueles laços que ligam profundamente pais e filhos.
A morte dos pais, ela conta, sempre foi uma assombração a pairar constantemente. Quando acontece, a certeza do desespero se instala, mas, com ela, nascem outras certezas, ancoradas, sobretudo, nas relações de amor e admiração que ajudam a passar pela ausência. “O luto não é etéreo; ele é denso, opressivo, uma coisa opaca. O peso é maior de manhã, logo depois de acordar: um coração de chumbo, uma realidade obstinada que se recusa a ir embora”, escreve Chimamanda. “Eu não vou ver meu pai nunca mais. Nunca mais.” Entre os preparativos para o velório, o enterro, as cerimônias igbos tradicionais, a administração da distância e dos anseios da família e os cuidados com a mãe, que a autora viria a perder pouco depois, entram também reflexões sobre as particularidades relativas ao luto na cultura africana. “Esse jeito igbo, esse jeito africano de lidar com o luto tem seu valor: o luto exteriorizado, performático e expressivo, no qual se atende a todos os telefonemas e se conta e reconta o que aconteceu, no qual o isolamento é um anátema e ‘pare de chorar’ um refrão”, observa.
É sobre ela mesma, mas também sobre sua ancestralidade e as ausências familiares, que Djamila Ribeiro escreve em Cartas para minha avó. Com textos endereçados à avó Antônia, a filósofa e ativista revela viver um luto há muito reprimido. Djamila perdeu a avó ainda menina e a mãe morreu quando a autora tinha 20 anos. Um ano depois, foi-se o pai. Djamila demorou para processar esses lutos e, em parte, isso se deve a uma cobrança social violenta que também é fruto do racismo. “No enterro de minha mãe, a mãe de uma amiga me disse: ‘Não chore, você precisa ser forte pelos seus irmãos’. Sei que ela não falou por mal, mas quão cruel é dizer para uma jovem de 20 anos que ela não pode chorar a morte de sua mãe? (...) Essa imagem da mulher negra forte é muito cruel. As pessoas se esquecem de que não somos naturalmente fortes. Precisamos ser porque o Estado é omisso e violento”, reflete a autora para, mais à frente, revisitar a própria infância, quando os pais exigiam da menina força diante das agruras da vida. “Preparar para a vida, quando se trata de uma criança negra, é ser brutalizada o bastante para aprender a lidar com a brutalidade do mundo”, escreve Djamila.
- Lili – Novela de um luto
De Noemi Jaffe. Companhia das Letras, 140 páginas. R$ 39,90 - Notas sobre o luto
De Chimamanda Ngozi Adichie. Tradução: Fernanda Abreu. Companhia das Letras, 140 páginas. R$ 29,90 - Cartas para minha avó
De Djamila Ribeiro. Companhia das Letras, 200 páginas. R$ 34,90