Dizem que quando Clarice Lispector e Maria Carolina de Jesus se encontraram, a admiração foi mútua. “Como você escreve elegante”, teria dito Carolina. “E como você escreve verdadeiro”, teria respondido Clarice. A escritora Carola Saavedra narra o encontro em ensaio publicado em seu último livro, e Vera Eunice de Jesus, filha de Maria Carolina, confirma que havia um respeito de escritor de Clarice pela autora de Quarto de despejo.
Vera acompanha de perto tudo o que se escreve e se diz sobre a mãe, que morreu em 1977, aos 62 anos, e foi graças a ela que a Companhia das Letras chegou aos manuscritos de Casa de alvenaria, que chega às livrarias em dois volumes e com prefácio de Conceição Evaristo e da própria filha da autora. “A Conceição entrou com aquele lado Carolina referência para o negro, para a comunidade negra, e eu fui pela linha da emoção, de ser filha”, conta Vera.
Carolina nasceu em Sacramento, em Minas Gerais, mas passou boa parte da vida adulta na favela do Canindé, em São Paulo, onde escreveu Quarto de despejo: Diário de uma favelada. O livro foi publicado em 1958 graças ao jornalista Audálio Dantas, que jogou luz sobre a figura da escritora e manteve com ela uma relação até o fim da vida. O livro fez muito sucesso na época, mas passou décadas fora de catálogo, assim como Casa de alvenaria: Diário de uma ex-favelada, publicado em 1961. Agora, a obra de Carolina está de volta ao mercado editorial, e a expectativa é de que muitos inéditos desembarquem nas livrarias nos próximos anos.
Casa de alvenaria cobre um período especial da vida de Carolina. Ela sonhava em sair da favela e finalmente conseguiu morar em uma casa, depois de colher os frutos plantados com o sucesso de Quarto de despejo. Mas o sonho se deparou com uma realidade cruel que Vera Eunice veio confirmar ao reler Casa de alvenaria. “Percebi a infelicidade da minha mãe ao vir para sala de visita”, conta. “O maior sonho dela era sair de favela e ir para a casa de alvenaria, mas, no livro, ela fala que deveria ficar na favela, porque a sala de visitas tinha muito racismo e discriminação, por ela ser negra, por ter pouco estudo, por ser mãe solteira, por escrever, ao ver deles, errado. Mas Carolina não era semianalfabeta, ela escrevia o ‘pretuguês’, como dizia Lélia Gonzalez”.
Vera conta que a mãe andava sempre com um dicionário debaixo do braço e tinha muito empenho em aprender. Carolina frequentou a escola na infância durante dois anos, quando aprendeu a ler e escrever. Muito de sua escrita guarda o jeito de falar do próprio contexto no qual viva, uma dinâmica que a filha lutou para manter na edição dos dois novos volumes. Não foi fácil. Como os livros circulariam pelo ambiente escolar, houve a vontade de corrigir palavras e expressões, mas os editores acabaram optando por deixar apenas as correções exigidas pelo novo acordo ortográfico.
O resultado é uma oralidade bem preservada: a leitura transporta para a fala de Carolina e é quase possível ouvi-la contar, de forma mágica, o impacto da mudança da favela para o bairro de Santana, em São Paulo. “Ela estava adquirindo a norma culta, por isso tinha essas confusões na escrita”, conta Vera, que é professora de português. “Não alteramos o jeito dela escrever. Decidimos manter o ‘pretuguês’ para as crianças perceberem como nosso português sofreu mudanças até hoje.”
Outro motivo para Vera querer manter a escrita de Carolina sem correções foi dar uma resposta a uma ideia com a qual volta e meia ela se depara. “Alguns críticos falavam que o Audálio escreveu Quarto de despejo, e eu sou testemunha de que minha mãe escreveu a vida inteira. Eu dormia com ela até os 18 anos e eu via muito minha mãe escrever”, garante. A relação de Carolina com Audálio passou por alguns embates ao longo dos anos.
Favela
O jornalista queria manter a imagem da autora como uma favelada, o que, acreditava, ajudaria a vender livros. Em Casa de alvenaria, Carolina se queixa da atitude e expressa o temor de ser “teleguiada” por Audálio, que queria controlar, inclusive, a maneira como se vestia. “Audálio falava que descobriu minha mãe e não é verdade, porque minha mãe escreveu a vida inteira. Em 1940, ela já estava nas editoras para publicar os livros, os poemas. Os pesquisadores falam, na realidade, que quem descobriu Audálio foi minha mãe”, diz Vera Eunice.
Ela foi atrás dos manuscritos de Carolina depois de sua morte, em 1977. A autora conhecida pelos diários era também poeta, compositora de letras de música, dramaturga e romancista. Escreveu muito e distribuiu manuscritos que nunca foram devolvidos, incluindo Diário de Bitita, editado na França, cujo original Vera conseguiu reaver. Esse pode ser o próximo lançamento de Carolina Maria de Jesus. “Minha mãe deu os manuscritos para os franceses, eles levaram e não devolveram. O livro foi mexido demais e agora vem autêntico”, explica.
Uma equipe de pesquisadores, do qual Vera faz parte, trabalha sobre os manuscritos. Carolina teria deixado sete romances, mais de 100 poemas e cinco peças de teatro. Parte desse acervo foi doado para Sacramento, mas a filha da autora diz que o material, que inclui 37 diários, não tem tratamento adequado. Segundo ela, há planos de construir um complexo cultural na cidade para abrigar a obra, mas o Instituto Moreira Salles já teria demonstrado interesse em receber o arquivo.
De acordo com Vera, os pesquisadores ainda vão decidir sobre os próximos lançamentos. A dúvida é entre o romance Dr. Silvio e o Diário de Bitita, obra autobiográfica sobre o período vivido em Sacramento, antes de Carolina ir para São Paulo. Vera também tem um projeto pessoal: está escrevendo a biografia da mãe e, para isso, tenta ler tudo que Carolina escreveu, mas é difícil. “Eu pego um livro de Machado de Assis e leio na sequência, agora Quarto de despejo, não consigo, vem minha mãe na memória, fico emocionada de ver como ela, então leio uma parte, mudo, vou pra outra parte, venho, é meio difícil”, conta.
“Mas tenho que ler esses livros, porque tem muitos biógrafos fazendo a biografia, e tem coisas que querem colocar que não dá para aceitar”. Vera se revolta com histórias como a de que a mãe colocava a mão dos filhos no fogo e de que ela bebia. “Um biógrafo falou que minha mãe foi casada, mas ela nunca foi casada. Então, eu preciso fazer a verdadeira biografia da Carolina”, diz, citando as biografias escritas por Tom Farias (Carolina – Uma biografia) e José Carlos Sebe Bom Meihy (Cinderela negra).
Casa de alvenaria
De Carolina Maria de Jesus. Companhia das Letras
Volume I
220 páginas, R$ 39,90
Volume II
508 páginas, R$ 59,90