Memória

Relembre a galeria de personagens memoráveis vividos por Tarcísio Meira

Tarcísio Meira atuou em mais de 60 produções televisivas, 31 peças de teatro e 22 longa-metragens em que encarnou figuras inesquecíveis

A ficção e a realidade se misturaram de maneira quase que indivisível nas vidas de Tarcísio Meira e Glória Menezes. É difícil falar de cada um deles separadamente. Sempre protagonizaram paixões românticas nas telas da tevê, que, muitas vezes, se estenderam para a realidade. O primeiro beijo que deram ocorreu no final de uma peça de teatro. Tarcísio beijava e matava a personagem de Glória Menezes.

Em entrevista concedida ao Programa do Bial, da Rede Globo, no ano passado, Tarcísio lembra que carregava Glória no colo, e ela usava uma camisola de cetim, muito escorregadia. Ficavam no alto de uma escada e, de repente, começou a sentir que ela escapava das mãos e havia uma escadaria para baixo. O perigo de uma queda de graves consequências era real: “E a gente no ar, ao vivo, na telenovela. Eu não estava me aguentando e me ajoelhei aos pés de Glória. Deu certo, estamos vivos até hoje”, brincou.

Tarcísio desmentia, categoricamente, com senso de humor, a versão do chamado beijo técnico nos palcos, nas telenovelas e nos filmes: “Não tem isso não! Beijo é beijo. Não tem como ser técnico. É bom! Os homens me odiavam”.

Mas, ao mesmo tempo, em outro depoimento para o programa Altas Horas, de Serginho Groissman, ele comenta sobre a banalização do beijo: “O beijo era uma coisa muito importante. Você beijava alguém quando havia uma razão muito forte pra beijar. Era um beijo carregado de emoção entre os personagens. Hoje em dia, as pessoas são mais soltas, beijar é fácil", continuou o ator.

Tarcísio Meira atuou em mais de 60 produções televisivas (telenovelas, minisséries, teleteatros e telefilmes), 31 peças de teatro e 22 longa-metragens. Gostava de se jactar de que era o ator que mais decorou palavras no mundo. E não aceitava a alegação de que algum ator mexicano poderia ter feito mais novelas do que ele, mas não ter decorado tantas palavras, pois “eles não decoram, usam ponto eletrônico”, disse ao site Memória Globo.

No entanto, não são apenas os números que contam. Ele interpretou personagens que se tornaram antológicos, tais como João Coragem, em Irmãos coragem, Juan Gallardo, em Sangue de areia, Emerenciano, em Roque Santeiro, Renato Villar, em Roda de fogo, entre outros.

Audiência

Segundo o diretor José Bonifácio Sobrinho, o Boni, a novela Os irmãos coragem conquistou mais audiência do que os jogos televisionados da Copa do Mundo de Futebol de 1970: “Diz Boni que nós demos 93% no Ibope, e o jogo deu 92%.”, comentou Tarsício Meira. Segundo ele, foi a primeira vez que os homens perderam a vergonha de assistir telenovela, “porque novela era coisa de mulher”.

Certa vez, ele e Glória Menezes viajaram rumo a Salvador e fizeram um passeio de barco. Outro barco emparelhou com o deles, foram reconhecidos, o vizinho de embarcação começou a cantar a música de Irmãos coragem. A água reverberou a voz. Ao ouvirem, os passageiros dos outros barcos acompanharam o canto e uma procissão de embarcações entoou a famosa canção no mar, em uma das homenagens mais comoventes que Tarcísio recebeu durante a carreira.

Ele ficou famoso no papel de galã. Apesar disso, brincava que não se considerava bonito: “Agora, eu reconheço que era bonito”, disse em entrevista a Pedro Bial, no ano passado. Viveu o papel sem fazer pose de celebridade ou cultivar o narcisismo acrítico. O galã era o herói e, nesta condição, geralmente, tinha de ser bonito. Mas, eram papéis que Tarcísio julgava “insípidos e chatos”.

Não era só um galã, era um ator. Tanto que se desvencilhou do rótulo ao interpretar o personagem Hermógenes, encarnação do diabo, na minissérie Grande Sertão: Veredas, adaptada da obra de Guimarães Rosa; o personagem Euclides da Cunha, na minissérie Desejo, que evoca o triângulo amoroso que culminou na morte do escritor; ou o personagem Kristo Conquistador Dom Sebastião, em A Idade da Terra, filme dirigido por Glauber Rocha.

Em A Idade da Terra, Tarcísio encarnou um dos quatro Kristos ressuscitados no Terceiro Mundo, o Kristo Dom Sebastião. Cansado do cinema de roteiro, Glauber lançava uma ideia para o ator e pedia que ele improvisasse livremente. Em uma das cenas memoráveis, Tarcísio/Kristo Dom Sebastião encarna a postura do colonizador europeu no meio de um desfile verídico de uma escola de samba no Rio de Janeiro, acompanhando o ritmo frenético da batucada somente com o ríctus facial, por mais de 10 minutos. Glauber queria representar o racionalismo europeu diante do frenesi dionisíaco da cultura afro-brasileira.


Brincadeira do teatro

Tarcísio Magalhães Sobrinho nasceu em 5 de outubro de 1935, em São Paulo. No entanto, ele adotou o Meira, extraído do sobrenome da mãe, pela crença, vigente à época, de que se a soma das letras do primeiro nome com o segundo desse 13, seria um sinal de sorte. Na verdade, Tarcísio queria ser diplomata, mas foi reprovado no primeiro exame para o Instituto Rio Branco, em 1957, e desistiu da ideia.

Tornou-se ator por acaso. Enveredou pelo teatro amador de brincadeira, ganhou prêmios e foi convidado a trabalhar no circuito profissional. O primeiro papel importante que fez foi a interpretação de um oficial do Exército japonês na peça Soldado Tanaka, de George Kaiser, em montagem de 1959, onde dividia o palco com Sérgio Cardoso, na época, uma estrela do teatro.

Mas a carreira de Tarcísio deslancharia mesmo com a televisão. Ele estreou no famoso Grande Teatro Tupi, programa de teleteatro, quando contracenou pela primeira vez com Glória Menezes em Uma Pires Camargo, em 1961. Tarcísio interpretava um advogado que se apaixonava por uma presidiária, vivida por Glória Menezes, telefonista do presídio, durante uma linha cruzada.

Eram tempos heroicos da tevê. Os atores trocavam de roupa no meio da cena. O câmera dava um close e eles continuavam falando, enquanto a figurinista substituía a saia da atriz ou o terno do ator. Certa vez, o cinegrafista enganchou a câmera em um vestido de Glória e ela teve de rezar para que a cena terminasse logo. Toda a transmissão era ao vivo, qualquer erro ficava escancarado.

Ao deixar a TV Tupi e mudar para a Excelsior, em 1963, Tarcísio participou de 2-5499 Ocupado, de Dulce Santucci, a primeira telenovela diária da televisão brasileira, que alcançou enorme sucesso. Na TV Excelsior, atuou em mais nove novelas, com destaque para Ambição (1964) e Almas de pedra (1966), ambas de Ivani Ribeiro.

A estreia na TV Globo ocorreria em 1967, com a novela Sangue e areia, numa adaptação do romance do espanhol Blasco Ibañez, realizada por Janete Clair, que consagrou a dupla Tarcísio Meira e Glória Menezes na condição de casal romântico. A primeira impressão que Tarcísio teve de Glória, em 1961, foi fulminante: “Conheci Glória quando estava ensaiando uma peça dirigida por Antunes Filho. Eu a vi passar no palco e falei: ‘Que mulheraço! Que mulher bonita’”.

No entanto, diferentemente do que a maioria das pessoas imagina, não foi com Gloria Menezes que Tarcísio mais contracenou: ele trabalhou mais vezes com Vera Fischer e Bruna Lombardi. Em 2021, Tarcísio e Glória completaram 56 anos de casados. Eles nunca gostaram de serem considerados um casal ideal: “Somos apenas um casal”.

Mas um casal movido por um amor difícil de encontrar, como admite Glória Menezes em entrevista a Pedro Bial: “Aqui é assim, eu amo profundamente o Tarcísio, e eu tenho certeza de que Tarcísio ama profundamente a Glória. Eu sei que é coisa rara, mas isso aconteceu com a gente, o amor. E o amor supera todas as dificuldades”.

“O trabalho do ator é bonito e útil. Diz respeito à sensibilidade. Eu procuro desempenhá-lo da melhor maneira possível, com a máxima eficácia. Tento convencer as pessoas das verdades daquele personagem. Essa carreira me gratifica muito”, dizia Tarcísio Meira.

Ele superou os rótulos

A história de Tarcísio Meira e a da teledramaturgia brasileira se confundem. Um lindo capítulo da nossa televisão se encerrou ontem, com a morte de Tarcísio, aos 85 anos, devido a complicações da covid-19. O ator morreu um dia depois de outra grande perda, a de Paulo José.
A primeira grande novela de Tarcísio foi também a primeira diária da história da televisão brasileira: 2-5499 Ocupado, escrita por Dulce Santucci em 1963 e exibida na TV Excelsior. Tarcísio de cara conquistou o país das telenovelas e o rótulo de galã que o acompanhou a vida inteira. Existiram outros galãs na nossa telinha, sim, mas Tarcísio era O galã. Com ele era assim. As coisas eram maiúsculas: o sorriso, os olhos expressivos, o talento descomunal.
O rótulo de galã não o abandonou, mas não o prendeu. Tarcísio era muito maior do que esse nome. E provou isso passeando por muitos tipos. Do mocinho clássico João Coragem em Irmãos Coragem (1970), já na Globo, à leveza do Felipe de Guerra dos sexos (1983), passando pelo rígido Dom Jerônimo de A Muralha (2000) e pela comédia rasgada em Araponga (1990), como Aristênio. Isso sem falar em momentos épicos, como o capitão Rodrigo de O tempo e o vento (1985), e Euclides da Cunha (1990) em Desejo.
Em um dos seus últimos trabalhos na telinha, Tibério Vilar do remake de Saramandaia (2013), Tarcísio fez par romântico com Fernanda Montenegro pela primeira vez na carreira. E como foi lindo ver eles dois juntos! A emoção transbordava.
Tarcísio se despediu das novelas em grande estilo, como Lorde Williamson de Orgulho e paixão (2018). Mas a despedida é das novelas. Um ator como ele não sai nunca de cena. Fica gravado em nossa memória.