O que acontece quando o cineasta Jeferson De, que, há duas décadas, redigiu o Dogma Feijoada, sugerindo a revisão da representatividade de negros no cinema nacional, encabeça um projeto, por seis anos, que tem por protagonista o patrono da Abolição da Escravidão? Longe de um cinema explosivo ou a serviço da idealização de uma figura admirável, como Luiz Gonzaga Pinto da Gama (libertador de centenas de escravos), o longa Doutor Gama aposta na serenidade e na capacidade de convencimento de um jurista que, inicialmente, livre na Bahia, se viu escravizado no século 19, antes do discreto reconhecimento como advogado, jornalista e poeta.
“Todo o trabalho de criação artística do filme teve como base a pesquisa acadêmica. O início de nossa produção contou com a consultoria da professora Ligia Fonseca Ferreira, umas das mais importantes pesquisadoras da obra de Luiz Gama”, conta Jeferson De, em entrevista ao Correio.
Ano passado, o diretor esteve à frente do longa M8 — Quando a morte socorre a vida, lançado pouco depois do assassinato de George Floyd, e não tem dúvidas do avanço histórico, como negro, da expressão de sua arte. “Sou um diretor fruto do meu tempo, seus avanços e dificuldades na realização de filmes. A criação da Ancine (Agência Nacional do Cinema) e toda a influência que ela teve nas políticas estaduais e municipais beneficiaram um número maior de artistas, mas, principalmente, o surgimento de novos realizadores.
Hoje temos muitos artistas pretos que cresceram vendo e aprendendo com muitos filmes brasileiros frutos de políticas públicas, e vale a pena apontar o número de artistas pretos que vieram das universidades pública e privada”, reflete.
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Atuante na montagem do filme, que conta três fases distintas da vida de Gama, desde o breve convívio com a mãe (com participação de Isábel Zuaa), Jeferson De dirigiu o ator César Mello, na pele de Gama por mais tempo na tela. E, no set, orientou artistas como a atriz brasiliense Mariana Nunes, que vive a esposa do homem dedicado, mesmo antes de a escravidão ser abolida no Brasil, à libertação de muitos irmãos.
“Acredito que os filmes são janelas que nos mostram detalhes que podem passar despercebidos, mas também podem ser espelhos de uma nação. É isso que proponho em meus filmes. Um meio para expor quem fomos, somos e o que seremos”, observa Jeferson De, conhecido como diretor de Bróder (2010) e O amuleto (2015).
Filmado em Paraty (RJ), destacada para fazer as vezes de São Paulo, o filme distribuído pela Elo Company traz, no elenco, Sidney Santiago, Johnny Massaro e Zezé Motta, além de ClaraChoveaux e Eron Cordeiro, dupla que reproduz fortes diálogos preconceituosos.
“Filmes sobre a escravidão, em geral, trazem muitas cenas de tortura física, negros no tronco ou mulheres sofrendo atrocidades na tela. Em Doutor Gama, não temos a exploração da violência visualmente óbvia. Optei por ampliar a reflexão de como nós negros fomos tratados no período da escravidão. Ou seja, não gastamos litros de sangue em chicotes estalando nas costas de meus antepassados.
Queríamos fazer o espectador refletir, buscar suas próprias respostas sobre as raízes do estado que estamos hoje em dia”, entrega. Num dos trechos do longa, se fala em terra livre de reis e escravos. Seria um aceno de realidade possível? “Tenho filhos, me sinto obrigado a acreditar no futuro. Sou otimista, o ser humano pode melhorar, mas, para isso acontecer, são necessários muita luta e sacrifícios”, destaca Jeferson De.