“Discussão sobre ideias ou pensamentos que causa divergências; altercação, contestação”, este, segundo o dicionário Michaelis, é o significado do termo polêmica. Na música, este é o significado de Kanye West. O rapper é talvez uma das figuras da indústria cultural que mais gerou divergências, altercação e contestação nos últimos anos. Mais uma vez, West tomou para si os holofotes e, no último domingo (29/8), lançou Donda o aguardado décimo disco solo da carreira do cantor.
Desde os primeiros rumores deste álbum, já houve muita movimentação. A começar pelo fato de que estava marcado para ser disponibilizado em julho de 2020, com o nome God’s country, o trabalho teve até single e lista de faixas publicados. O trajeto de julho de 2020 até o lançamento em agosto foi longo e tortuoso, o álbum mudou o nome para Donda, Kanye fez acusações importantes a gravadoras no twitter, ganhou Grammys em categorias do gospel, divorciou-se de Kim Kardashian e, mais recentemente, entrou com um pedido oficial para mudar de nome para Ye.
O processo todo culminou em três apresentações em estádios, as chamadas “listening parties”, onde vendeu ingressos para o público ouvir como estava o Donda, um evento teste. As duas primeiras foram no Mercedes-Benz Stadium em Atlanta, a terceira em Chicago e todas foram transmitidas pela Apple Music. Kanye criava um cenário, uma atmosfera e as músicas eram tocadas nos autofalantes dos estádios. De uma festa para outra eram marcantes as alterações no disco, mais faixas, outras participações, alterações de ordem, o músico chegou a se mudar temporariamente para um dos camarins da arena de Atlanta no processo de finalização de um dos eventos.
O álbum é o segundo da nova fase de Kanye, o cantor se converteu cristão pouco antes do último trabalho, Jesus is King de 2019, e mudou a forma como se apresenta, canta e rima. A temática é voltada a assuntos cristãos e o cantor não xinga mais nas letras. O álbum funde musicalmente melhor a forma como o rapper faz música e o conceito que decidiu que seguiria nesta nova fase da carreira. West ainda fala de Deus, mas agora faz canções que lembram mais a identidade que construiu em toda carreira pré-conversão ao cristianismo.
Donda tem conceito, é o nome da mãe de West e na capa leva apenas cor preta, segundo ele, a cor da pele dele e da própria mãe. Kanye ousa musicalmente, coloca faixas de 8 e 13 minutos, apresenta uma tracklist de 27 músicas, um disco com 1 hora e 48 minutos de duração, maior do que os últimos dois lançamentos do rapper somados. Ye passeia por diversos tipos de beats, usa corais, instrumentos diferentes, viaja sem medo, investiga sonoridades novas e revisita fórmulas que já haviam dado certo em outros momentos da própria carreira. Por mais que seja um álbum muito longo, West consegue não deixá-lo massante, mas peca por alguns excessos, principalmente em interlúdios longos entre músicas e faixas conceituais demais para serem entendidas. Donda é, por essência, complexo.
Ye ainda aproveita da influência e importância que ainda possui para adicionar o máximo possível ao trabalho e trazer para o disco personalidades importantes. Desde produtores como Mike Dean, com quem já trabalhou com sucesso em outros álbuns da carreira, até músicos do calibre de Jay-Z, The Weeknd, Travis Scott, Ariana Grande, Roddy Rich, Kid Cudi e Chris Brown. A lista de participações passa de 15 nomes importantes do mercado da música atual, isso porque ainda não foi completamente revelada já que a grande maioria deles não foi creditada. As adições de versos de todos esses artistas agrega muita qualidade às canções lançadas, e a maioria dos destaques do disco estão na interação da música e rimas de Kanye com a parte dos outros músicos.
Entretanto, são as participações também que geram a principal polêmica do disco. Dois nomes se sobressaíram quando anunciados: DaBaby e Marilyn Manson. Os dois estão envolvidos em casos muito comentados na mídia e redes sociais recentemente. DaBaby teve o show no Lollapalooza Chicago cancelado após uma série de comentários homofóbicos no festival Rolling Loud. Manson passa por uma situação ainda mais grave, o roqueiro enfrenta acusações de estupro, assédio físico, moral e sexual, pedofilia e até de ter deixado mulheres em cárcere privado. Os artistas já haviam aparecido do lado de Kanye na última apresentação em estádio do álbum, o que gerou muitas críticas a Ye.
O ponto é tão grave que a faixa em que os dois participaram, Jail pt. 2, estava bloqueada pela gravadora quando o disco foi disponibilizado nos serviços de streaming. Kanye West veio a público no Instagram afirmando que a Universal havia cortado a faixa e lançado o álbum sem o consentimento dele. Apenas horas depois a música foi liberada.
Apesar de mais de anos trabalhando no disco, muitas mudanças, a construção de um grande conceito, uma homenagem a própria mãe e a ajuda de nomes importantes da música, Kanye West escolheu que o álbum fosse primeiramente polêmico, como ele pessoalmente sempre foi. A escolha de Kanye pôs tudo a perder, existe um limite para ousadia e a irreverência de um artista. Ao ter Manson e DaBaby no disco, Ye deu voz a discursos nocivos a muitas pessoas, pessoas que lutam todos os dias por igualdade, por direitos.
Donda com certeza é o álbum mais interessante de Kanye West desde o The life of Pablo, de 2016, se levado em consideração apenas o lado musical. Porém, ao se envolver em polêmicas e dar voz a figuras que agiram de forma nociva, o rapper tira o foco de sua principal potência, que é a música, e vira apenas o Kanye West polêmico, que roubou o microfone de Taylor Swift nos VMAs, que se envolve em brigas públicas, que tem posições políticas controversas. Ye deixa completamente de lado a parte de si que o proporcionou Grammys merecidos, shows lotados e a fama de um principais músicos da sua geração do hip-hop.
Ao questionar todos os limites, Kanye West faz com que o ouvinte pergunte: Quanta polêmica ainda é possível aguentar em nome da música de Kanye? E a resposta, apesar de ainda não ser uma unanimidade, como toda boa polêmica, é que o rapper está desgastando a própria imagem e influência a um ponto que no futuro pode ser irreversível.
Donda, novo álbum de Kanye West
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