Arriscar-se em outra modalidade depois de uma carreira consolidada é tarefa complicada. O subeditor de Cultura do Correio Severino Francisco ousou fazer esse caminho ao lançar um livro de poemas depois de ser reconhecido, há anos, como um dos principais cronistas da capital federal. Severino mostra em Flama, livro que lança agora, que a qualidade dos versos é tão alta quanto a da prosa.
Em Flama, ele exibe uma poética concisa e densa, que dialoga com nomes da literatura brasileira como Drummond, Clarice Lispector e Manoel de Barros com voz original. “Quando você se mete a escrever versos no Brasil, tem de se deparar com os grandes, em busca de sua voz. Esse diálogo é uma mistura de humilhação e provocação. Mas se você ficar só na reverência, não faz a sua poesia. É preciso se posicionar e confrontar com o seu olhar”, diz Severino.
A marca da poesia aparece nas crônicas de Severino, mas os poemas carregam outro tipo de linguagem. “Se você tem uma sensibilidade ou um instinto para a poesia, ela vai se manifestar de alguma forma em tudo que você faz. Mas há diferenças de linguagem e de forma: a crônica é mais dispersiva; a poesia do verso é mais concentrada e tensa”, esclarece o poeta e cronista. Ele cita o caso de Rubem Braga, que, ao escrever poemas, adotou estilo mais convencional do que nas crônicas, em que espalhou poesia de fazer inveja a Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira.
A capa despojada de Flama, toda em branco com o título em fonte preta, contrasta com o interior do livro. Os poemas ganham a companhia das ilustrações expressivas do artista plástico Wagner Hermusche, que vive confinado no meio do cerrado bravo. “Hermusche teve uma intuição e colocou Clarice Lispector com o corpo de esfinge egípcia, metade humana, metade animal, coroada por um feixe de pepalanto. Com isso, indicou a trilha a ser explorada”, conta Severino. “Ele utilizou a flora nativa para fazer conexões simbólicas com os poemas, embora só alguns sejam sobre Brasília. Acho que situou o livro em Brasília, sob um ângulo interessante, que funciona, plasticamente”, acrescenta.
Resistência
Severino acredita na poesia como forma de resistência num país em que o negacionismo e a vulgaridade são exaltados diariamente pelos principais governantes. A liberdade do poema se contrapõe ao autoritarismo que tenta se instaurar no Brasil. “A poesia salva das maiores pragas de nosso tempo”, defende.
“Nos tempos em que lecionava, eu tinha uma aluna, chamada Andreia, que anotava os poemas de Carlos Drummond em um caderninho. Eu dizia: 'Andreia está salva'. E a turma perguntava: 'Salva de quê'? Eu replicava: salva da mesmice, da desumanização, da manipulação, da massificação, da estupidez e da burrice.”
A poesia de Severino é mais forte também do que a instantaneidade e a pressa de um mundo pautado por vídeos de 15 segundos e pela auto-exposição constante. “A poesia é a tecnologia mais sofisticada que existe”, diz o escritor. Ela é o instrumento, para ele, capaz de iluminar a experiência humana em toda a precariedade e em toda singularidade. “Ela é a possibilidade de transcendência. Estou mais interessado na flama do que na fama.”
“Se você tem uma sensibilidade para a poesia, ela vai se manifestar de alguma forma”
Severino Francisco
Paixão fuminante
(para Juçara)
Senti o baque
o peso
e o abalo silencioso
quando
sem aviso
e sem defesa
de chofre
você entornou
a sua vida inteira
sobre a minha.
Van Gogh
Naquele verão, o meu pai
desembrulhou o sol no meio da sala
de dentro de um fascículo semanal,
na cidadezinha cercada de bananeiras.
Abra os olhos, as cores não são mais cegas.
Perto de Clarice 2
Lisérgica
sem precisar de nenhuma droga
metade animal, metade humana
saída diretamente da mata brava
para a vida
em voo dramático e acidentado
rumo ao divino
por favor, façam silêncio
não a interrompam, pois essa mulher
tem uma ocupação grave:
ela toma conta do mundo
solitariamente
só com a luz do olhar.
De volta para casa
(pensando em Rimbaud)
No meio das nuvens de poeira
levantadas pelos pneus dos carros
com as botinas sôfregas
derrapando na pista pedregosa
e os bolsos cheios
de versos amarfanhados
sentindo bater na pele
o coração gelado da noite
extraviado no espaço
chutando estrelas na estrada.
Flama
De Severino Francisco, com ilustrações de Wagner Hermusche. Edição do autor/54 páginas. À venda na Banca da Conceição (308 Sul). Preço: R$ 30.
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