Termômetro para tendências, os festivais de cinema já apontam mudanças: em Cannes, as mulheres foram a maioria no júri, houve a Palma de Ouro atribuída a filme conduzido por uma diretora e, no Brasil, a festa do cinema em Gramado (RS), este mês, desponta coroando quase uma equidade entre os gêneros de cineastas representados. Firmes no demarcar de terreno, diretoras de audiovisual de segmentos variados que vão do documentário à ficção, passando por série policial e animação, conversaram com o Correio sobre carreiras e visões de mundo.
Rompimento de barreiras
Entre as barreiras para fazer cinema no Brasil está a de enfrentar a inoperância da Agência Nacional do Cinema (Ancine) em lançar editais para produção de cinema, fato ressaltado pela cineasta Cristiane Oliveira: “Vivemos uma paralisia que começou, em 2018, muito antes da pandemia”. Na conjuntura negativa, ela ainda destaca a insegurança em torno da continuidade de trabalho, além da dissolução do fomento a cotas para iniciantes.
Atuante no mercado do audiovisual, Cristiane enumera outros entraves: “Em geral, os meninos não são educados para se tornarem adultos cuidadores, e isso gera uma sobrecarga de horas de trabalho para a mulher. Fora do seu emprego, têm que cuidar sozinhas de pessoas doentes na família, dos filhos ou mesmo da casa, porque os homens tendem a não se sentir capazes para certas funções”.
Contra as adversidades, a diretora gaúcha partiu para a realização do segundo longa (A primeira morte de Joana), e o título parou na seleção do Festival de Gramado (com exibição, pelo Canal Brasil, em 17 de agosto, às 21h30). Pela tevê, Cristiane vislumbra um público maior, “capaz de ampliar o diálogo sobre as violências que naturalizamos na educação, desde cedo”.
Na base das pesquisas junto a pessoas reais, Cristiane constrói personagens. No primeiro longa, Mulher do pai, ela investiu numa figura masculina central repleta de fragilidade. Agora, no novo longa, o foco é diverso: aos 13 anos, a protagonista Joana se posiciona contra tudo que não lhe pareça natural. “O diferencial ao escrever sobre mulheres está no fato de que todas compartilhamos uma história comum de opressão contra a mulher”, diz, ao que completa, em torno da representatividade, “novas gerações passam a acreditar que é possível uma mulher chegar à posição que quiser”.
Conectada e atenta
A diretora de animação Raquel Piantino acredita no efeito de corrente: uma mulher, ao ocupar uma área profissional, puxa outra mulher a se sentir no direito de ocupar esse mesmo lugar. Para além da projeção da animação mundial entre diretoras, roteiristas e animadoras, Raquel se fortalece em rede feminina de colegas chamada Garotas do Motion, geradora de “espaços de troca, debates e oportunidades de trabalho para mulheres”.
“Para o mais recente filme que dirigi Brasília 60+60 do sonho ao futuro (que brotou na Associação Cultural Teatro Mapati), formei uma equipe inteira de mulheres, foram 11 integrantes para fazer a direção de arte, animação e trilha sonora, muitas recrutadas no Garotas do Motion”, conta Raquel, formada em artes plásticas (UnB), em 2010, e autodidata, na especialização em animação. Entre as inspirações para investir no segmento vem de Juliet Jones (de seriados e longas), “uma artista extraordinária de Brasília”, como reforça Raquel.
Atualmente, ela se dedica a oficinas on-line em festivais, escolas e espaços culturais. O espírito agregador dos festivais como Curta Brasília e o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (no qual concorreu nas duas últimas edições) se revelam como importante vitrines locais e ponto de conexão com outros autores.
“Sou muito diversa dentro da linguagem da animação. Comecei pela animação tradicional em papel, e hoje misturo o tradicional às técnicas digitais, com experimentos em stop motion”, destaca. O próximo projeto de Raquel Piantino será um videoclipe em animação para música do novo disco da banda Joe Silhueta, e que está em pré-produção.
Visão diversa
Na multiplicidade das gerações adepta do streaming, a diretora Caroline Fioratti atenta para os consumidores de programas que vêm desde a tevê ao vivo, passando pelos que testemunharam a chegada da tevê a cabo, e ainda os que já nasceram na era do digital. “São várias gerações que desembocam na minha geração millenium e chegam à denominação Z. É necessário conectar com o que o seu público procura, ao clicar pela biblioteca de opções”, pondera a diretora-geral da série criminal Os ausentes.
À frente da primeira produção nacional exibida no HBO Max, Caroline foge de cumprir cota para mulheres ou elaborar suposto conteúdo feminino. “O que seria esse ‘conteúdo’? Obras românticas? Juvenis? Sou apaixonada por séries criminais e suspenses, por que elas são vistas então como conteúdo masculino? No programa, trato de seres humanos e de suas conexões de afeto. Temos ação, investigação, adrenalina, suspense, mas sempre focados no objetivo que é encontrar uma pessoa desaparecida, alguém que deixou um vácuo intransponível na vida de outros”, comenta a diretora.
Reforçar a carga de “identidade sensorial e emocional” junto ao público, numa abordagem visual carregada de simbologia e com personagens donos de conflitos profundos faz a diferença em Os ausentes. Historicamente conduzidos, na escrita e na direção por homens, os conteúdos policiais mexem com Caroline.
“Será que uma mulher, num papel de criação, não atrairia até mais espectadoras para o gênero?”, pontua a diretora que entrega uma das estratégias para bons resultados: buscar “vivências identitárias” atreladas à realidade para fundamentar personagens fictícios.
» Três perguntas / Lucia Murat, diretora de Ana. Sem título
Quem impulsiona seu cinema?
Acho que tive o privilégio de todo o meu cinema ter sido autoral. Ou seja, ele partiu de necessidades minhas, de angustias e de perguntas que me fazia. Evidente que trabalhei na indústria — em televisão e em publicidade — pois precisava me sustentar, e aí era uma peça numa engrenagem em que valia mais o meu conhecimento técnico. Mas, no cinema, não. Os 13 longas que fiz partiram de uma busca de situações particulares. Também sei que o fato de ter sido presa e torturada durante a ditadura na passagem da adolescência para a vida adulta interferiram nas minhas questões e consequentemente no meu trabalho. Não acho que seja um impulso pela ação, mas perguntas que me faço sobre o ser humano, sobre a violência que acabam perpassando meu trabalho.
A sororidade integra as mulheres de forma singular?
Acho que essa nova onda do feminismo que as jovens levantaram trouxe novas questões para as mulheres e, principalmente, a importância da união. Hoje, a questão identitária não se restringe à jovens mulheres de classe média — como era na minha juventude. Traz toda a questão de gêneros no movimento LGBTQIA+, traz a combatividade e a visão das mulheres negras. E todo esse movimento nos torna mais fortes.
Você enfrentou, na carreira, situações discriminatórias?
Acho que o mais complicado quando comecei a filmar era ter uma equipe preponderantemente masculina. Toda a equipe técnica era composta de homens. Isso nos obrigava como diretora dessa equipe a ter um comportamento duro, a não poder relaxar, o que é muito importante no processo criativo. Hoje, o prazer de filmar é muito maior porque conta com uma equipe onde você se olha e se vê também.
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