“Uma tragédia anunciada”. É dessa forma que está sendo contada a triste situação pela qual passa a Cinemateca Brasileira. Um dos galpões que guardava parte do acervo da entidade, no bairro da Vila Leopoldina, em São Paulo, pegou fogo na noite da última quinta. A situação foi controlada, porém, segundo o próprio Corpo de Bombeiros, muito do que estava ali armazenado foi perdido.
Apesar de não guardar o material mais sensível e importante do acervo, o galpão tinha cópias de filmes, equipamentos históricos, acervos completos de canais e catálogos originais que faziam parte da trajetória do cinema brasileiro ao longo dos anos. “Um alerta de que isso que aconteceu no depósito secundário, pode ocorrer na sede principal o que seria uma perda imensurável”, afirma Francisco Cesar Filho, curador e organizador de festivais de cinema como o DH Fest - Festival de Cultura em Direitos Humanos e Mostra Ecofalante de Cinema.
“Esse foi um golpe desferido, proposital ou não, contra a cultura brasileira que inclui a memória nacional. A ameaça a um tesouro que estava dentro destes galpões da Cinemateca”, sintetiza Vladimir Carvalho, um dos nomes mais respeitados no cinema documental do Brasil. Segundo ele, há 50 anos morador de Brasília, permanece uma atitude criminosa do governo que faz questão “de sapatear em cima dos focos da cultura brasileira”.
Fosse pela tecnologia ou pela quantidade de filmes, o respeito pela Cinemateca Brasileira, segundo ele, é de proporção internacional. “A culpa do ocorrido vem da indiferença e da perseguição que o governo tem feito aos pontos chaves da cultura. Acabando com o Ministério da Cultura, por exemplo. É uma atitude de lesa-pátria. O registro de atitudes e costumes da civilização brasileira foi perdido. Sem memória, você fica sem identidade”, destaca o diretor paraibano, que teme ter perdido negativos do filme Conterrâneos velhos de guerra (1992), abrigados na cinemateca.
“É um assassinato cultural o que ocorreu com a Cinemateca Brasileira. O incêndio foi só o auge de um processo de total abandono e descaso para com uma das instituições culturais mais importantes do mundo”, afirma a cineasta carioca Sabrina Fidalgo, premiada no Festival de Brasília com o curta Alfazema. “É a história do Brasil sendo apagada. Nossa memória está sendo destruída. Isso é inacreditável e inaceitável”, reflete a diretora.
Entre o material possivelmente perdido estão, principalmente,documentos que continham boa parte da história do cinema brasileiro. “A perda de memória do audiovisual é gigantesca quando se perdem documentos”, explica Francisco Cesar Filho. “Deve-se lamentar muito a perda da documentação histórica; a cinemateca tinha catalogados documentos que vinham desde os anos 1960”, adiciona o curador, que citou documentação da Embracine e Concine entre as perdidas no fogo.
Entre os documentos queimados estava parte do acervo do cineasta Glauber Rocha. Por anos, o Brasil testemunhou a incansável jornada de Dona Lúcia Rocha, incansável na preservação da obra do filho Glauber Rocha. Morta há sete anos, ela não testemunhou o esfacelamento de parte do acervo mantido pela Cinemateca Brasileira, que o cineasta Joel Pizzini (ávido defensor da memória de Glauber) descreve: “Uma tragédia mais que anunciada, reiterada, por absoluta negligência e falta de compromisso com a memória do país. É o triunfo da ignorância deliberada”.