Uma parte significativa do crescimento urbano no Brasil é feito sem a presença do Estado, de maneira desordenada e para atender às necessidades de uma população frequentemente negligenciada pelo poder público. Quando isso acontece, a infraestrutura é um dos primeiros desafios para pessoas privadas de quase tudo. Como conseguir água, energia e serviços básicos onde o dinheiro dos impostos não chega? A artista plástica Gabriela Bilá mergulhou nessa pergunta em uma pesquisa que acabou por relacionar infraestrutura e hábitos à mesa. Como pesquisadora integrante do projeto With(in), desenvolvido no Massachusetts Institute of Technology (MIT), uma das mais importantes instituições de pesquisa em tecnologia dos Estados Unidos, Gabriela produziu uma instalação-documentário hoje exposta na Bienal de Arquitetura de Veneza, cujo tema este ano foi How will we live together? (“Como viveremos juntos?”).
O fenômeno da expansão urbana, que no Brasil é chamado de favela, é calcado, principalmente, no processo de autoconstrução. “As pessoas vão construindo do jeito que dá, sem o estado ordenando. A ONU estima que, em 2050, cerca de 68% das construções mundiais serão assim”, diz Gabriela. “Meu grupo de pesquisa em Boston está estudando esse fenômeno e como as pessoas que moram nesses locais fazem para ter infraestrutura, como água e eletricidade. Como as pessoas têm coisas sem as coisas. E estamos desenvolvendo novas tecnologias para ajudar que essas comunidades tenham acesso sem necessariamente serem alimentadas pelo governo.”
A pesquisadora brasiliense viajou para Nigéria, Egito e México para acompanhar o cotidiano de três mulheres que vivem em favelas e habitações precárias. O foco era a comida e a organização das mesas em cada residência. “Eu tinha esse método, que era não só a comida, mas a mesa”, explica. No fim de cada refeição, ela fazia uma foto da vista de cima da mesa. A intenção era comparar o mapa da comunidade com o mapa da refeição. “A organização da mesa e das pessoas, a quantidade de pratos, isso acaba sendo muito característico de como elas entendem a comunidade. Eu pensei que tentar entender essas comunidades por meio da comida seria um caminho, porque esse processo de adquirir ingredientes e depois comer está presente em qualquer lugar”, garante Gabriela.
Mesa de regionalidades
Foram duas semanas intensas de acompanhamento da rotina de Gihan (Cairo, Egito), MamaG (Port Harcourt, Nigéria) e Eva (Guadalajara, México). Os locais foram escolhidos porque já eram terrenos de atuação de ONGs ligadas às pesquisas do MIT. Egressa de uma comunidade islâmica e divorciada, Gihan trabalha em um serviço de catering e mora a poucos metros do local. Eva precisa de horas de ônibus ao sair do trabalho para chegar à casa, na comunidade de Lomas del Centinela, nos arredores de Guadalajara. E MamaG, além de trabalhar no mercado de Port Harcourt, é também a responsável pelo banco coletivo da comunidade, uma iniciativa de crédito informal que salva vidas e futuros em regiões muito pobres.
Nas leituras feitas por Gabriela, é possível relacionar a organização da mesa com a geografia e o contexto social nos quais essas mulheres vivem. A mesa cheia de Gihan, com tantos pratos que não se vê a toalha, lembra a própria densidade da comunidade na qual vive. “São vielas estreitas, lojas pequenas, muito próximas, e a casa não tinha um centímetro de chão sem tapetes e cortinas. Tem uma estética da abundância ali, e vários estudos da cultura islâmica relacionam isso a uma oposição ao deserto, onde há escassez. Isso é uma leitura”, diz Gabriela.
No caso de Eva, a precariedade de uma casa que nunca está pronta se reflete na própria localização da mesa dentro dos ambientes. Segundo a pesquisadora, Lomas del Centinela lembra muito as ocupações nos arredores do Distrito Federal. Sem infraestrutura alguma, Eva começou a erguer a casa há 20 anos. “Ela era a única que tinha uma casa que, apesar de irregular, considerava como dela e não tinha medo da demolição, de ser despejada, como as duas outras tinham. No México, o processo é um pouco mais parecido com o Brasil”, compara Gabriela. “Ela estava sempre revisitando como arranjava os móveis, então decidia na hora onde ia ser a mesa.”
Já MamaG, apesar de ser uma espécie de chefe na comunidade, preferia comer isolada e cultivar um distanciamento que também era útil para manejar o dinheiro da coletividade. “Uma semelhança que acabei tirando entre as mesas é que todas eram mais improvisadas, mas a comida era muito tradicional, não tinha nenhum tipo de fast-food ou comida processada. Mesmo que isso significasse cozinhar dias antes, por horas, em um forninho elétrico e sem geladeira”, conta. “E acaba tendo uma relação direta disso com a comunidade: elas constroem do jeito que dá, com o que têm, podendo ser demolido, com risco de despejo, mas a comunidade e os laços sociais são muito tradicionais, ritualísticos e presentes.”
Além da instalação em Veneza, o With(in) rendeu também um documentário imersivo de 17 minutos e um livro. Em formato de cinema expandido, o filme foi concebido para ser visto em uma sala com projeções em três paredes acompanhadas das maquetes das três cidades visitadas pela pesquisadora. “A pessoa vai vendo as coisas acontecerem nas paredes, com o som de vários canais e imagens que acompanham o percurso das mulheres”, explica Gabriela, que terminou o mestrado no MIT e permanece na instituição como pesquisadora. “Agora estou como pesquisadora nessa área, misturando cinema com instalações de arte sempre e estudos da cidade como tema. Nunca tinha feito um trabalho tão etnográfico e documental, foi uma coisa muito forte e marcante. Gostaria de continuar fazendo”, garante.