Ao assumir o posto de compositor da trilha da série Colônia, com a experiência acumulada de mais de 50 projetos em 24 anos de carreira, o instrumentista Patrick de Jongh não visualizava a sobreposição de desafios da obra exibida pelo Canal Brasil e pela GloboPlay. Claro que analisou, antes de mais nada, as características fundamentais para um processo sonoro imersivo: da temática ao contexto histórico e geográfico, passando pela linguagem com que o material foi filmado. Durante o processo, Patrick teve ainda que lidar com a superação de problemas pessoais. Com cerca de 40% da trilha sonora em progresso, o músico de origem holandesa enfrentou a descoberta de um câncer de tireoide e as sequelas de um acidente no qual quebrou ombros, tornozelo e joelhos.
Habilidoso no manejo de 15 instrumentos, o violinista formado no Conservatório de Bruxelas se deparou com dores e mobilidade limitadas. Fator determinante na trilha de Colônia, o violoncelo, não por acaso, demarca a solidão de personagens. Conversas com o diretor André Ristum, ainda na fase de roteiro da série, auxiliaram. “A fotografia em preto e branco reforçou a minha busca pela sonoridade de uma narrativa em plena ditadura. O Hospital Colônia de Barbacena era quase um campo de extermínio: foram mortas mais de 60 mil pessoas lá. Na trilha, destilei a atmosfera de incertezas dos personagens. Reforcei a relação de campo de concentração e de muito sofrimento. A temática é bem pesada e houve pessoas que tiveram resiliência para sobreviver”, comenta o músico.
A sensação de incerteza sobre o amanhã e uma trilha sonora intermitente calibram Colônia, obra baseada em abusos descritos no livro Holocausto brasileiro. “Optei por uma trilha de suspense, que tem boa referência de Krzysztof Penderecki (de O iluminado) e com algo da que acompanha Messiah (da Netflix). Não é comum, mas optamos por uma trilha, de fora a fora, no atual trabalho. A cada trilha, sirvo ao projeto, sem usar o espaço para voos com artifícios autorais e de gosto pessoal. Tudo é matematicamente pensado para ter o melhor resultado”, conta Patrick de Jongh, que tem desenvolvido a carreira paralela de produtor associado.
Saiba Mais
Vasta experiência
Para além dos trabalhos no Brasil, em que integrou as equipes de longas como Por que você não chora? e A última estação, e de séries como Crias de Dulcina e Rir pra não chorar (em andamento), o músico de origem holandesa Patrick de Jongh, aos 41 anos, conta com boas experiências no exterior. “Estudei produção musical em Roterdã e especialização em engenharia de áudio e engenharia de acústica no SAE Institute de Londres e em Los Angeles”, conta.
Houve a ponte de um curso desenvolvido na Universidade da Califórnia, num convênio com o departamento de música que colocou Jongh em contato com os estúdios da Universal. Daí, muito do conhecimento ter advindo de vivências junto a artistas como Howard Shore (de O Hobbit), Hans Zimmer (habitué de Christopher Nolan) e Danny Elfman (das fitas de Tim Burton). Patrick tem orgulhos no currículo, como ter participado da sonoridade de abertura de Resident evil, ao lado de mestres como Marilyn Manson e Marco Beltrami, além das músicas adicionais dispostas na trilha do colega Nicola Piovanni para o longa O traidor, do celebrado Marco Bellocchio.
O alemão das notas certeiras
Foi com R$ 300 no bolso e o coração pulsando por uma brasileira conhecida na Espanha que o cantor e produtor musical alemão Sascha Kratzer, 45 anos, chegou a Brasília, sem falar português e sem saber o que faria exatamente na capital. Na cidade natal, Karlsruhe, deixou estúdios montados para investir em trilha sonora de publicidade e curtas-metragens. “Virei pai, e disse: ‘agora vou ter que me virar aqui’”, conta, ao lembrar da chegada a Brasília, há 10 anos. Aos poucos, ele constituiu a Astrals Music Production, usada em criações musicais de 11 longas-metragens.
O passo inicial do ex-cantor de rock progressivo veio por meio da ajuda ao colega Zé Pedro Gollo na realização da música para Billie Pig, comédia de José Eduardo Belmonte. “Levantei as músicas com o Zé Pedro. Descobri o poder da trilha sonora, a interferência no espectador. Com cada som, é possível manipular tudo: o que cada pessoa sente ao assistir a uma cena”, avalia o músico.
Antes do susto com a vitória de um troféu Kikito de melhor trilha no Festival de Gramado por O homem cordial (de Iberê Carvalho), em 2019, Sascha foi encontrando pessoas do mercado de cinema da cidade. Bruno Torres e Santiago Dellape foram alguns dos parceiros que apostaram no talento do alemão, que é autodidata. “Nunca estudei música. Na Alemanha, fiz aulas de canto. Hoje em dia, estudo toda noite: assisto a vídeos, leio livros. Busco me atualizar. Já fiz muita mixagem de cinema, lido com tudo o que for relacionado a áudio. Sei tocar todos os instrumentos, mas nenhum de jeito bom”, conta, aos risos.
Uma diversidade sonora é canalizada para cada projeto, como conta o artista. “Eu faço tudo pelo filme. Nunca sou egoísta de pensar o que ‘eu’ quero fazer. Penso no que o filme precisa para funcionar”, conta. Uma composição especial, como a feita para o longa O último Cine Drive-in, por exemplo, pode acabar desprezada. “The road era uma música deprê e, na montagem do filme, não funcionava. Ao estilo do guitarrista Django Reinhardt, apostamos em algo mais gypsie, mais cômico. Deu uma dor de cabeça para chegar lá”, relembra.
Para a trilha de O espaço infinito (Leo Bello), um ano de espera foi necessário, mas houve o ajuste com a agenda de Anna-Maria Hefele, cantora que domina o overtone singing. “É o uso de uma voz que traz a impressão de várias vozes ao mesmo momento. Como há loucura, no filme, com uma mulher que surta dentro de uma caverna, buscamos o interior dela: é quase um orgasmo, quando ela surta; daí recorremos a uma sonoridade bem gostosa”, conta Sascha.
Dono de brandos aspectos teóricos, o músico conta que segue tendo as melhores ideias no carro ou no banheiro. “Canto, gravando no celular. Às vezes, uma melodia básica, e noutras registro o arranjo inteiro, que pode ser de uma orquestra inteira que está na minha cabeça. Lembro, depois, ouvindo o áudio do celular”, comenta. Com o ouvido bom, Sascha agora se debruça sobre O pastor e o guerrilheiro (de José Eduardo Belmonte), o novo longa de Thiago Foresti e em uma série de nove documentários feitos para o maior canal de tevê alemão.
“Cada filme requer elementos muito diferentes”, reforça o compositor. Tratando de ditadura, o longa de Belmonte convidou ao estilo mais clássico, enquanto o filme de Foresti demandou muita música eletrônica e sintetizador. Para os que queiram se aventurar no mundo das trilhas, Sascha alerta que os valores pagos são pequenos, mas há sempre a perspectiva positiva com a entrada de direitos autorais.